domingo, 26 de março de 2017

Em família

Me lembro bem de que, nas últimas eleições para presidente, uma conhecida defendeu seu voto em Aécio Neves com o argumento (?!) de que, ao vencer o pleito, o senador mineiro teria a oportunidade de cumprir o mandato que o avô dele, Tancredo, não conseguiu nem iniciar porque morreu na véspera da posse.

O sangue comove mesmo o brasileiro. Não é à toa que teste de paternidade e reencontro de parentes ao som de trilha cafona ainda fazem tanto sucesso na tevê.

Até me surpreendi com a cara feia da tal opinião pública quando o prefeito Marcelo Crivella tentou colocar o Marcelinho como secretário da Casa Civil carioca. Onde se enxergou tanto nepotismo, não era possível apertar os olhos e enxergar um pai ajudando o filho a superar o drama do desemprego? Uma tremenda injustiça o Supremo ter suspendido a nomeação – o mesmo Supremo que não viu problema quando o gato de estimação do vice golpista (o Angorá) ganhou ministério e foro privilegiado.

Que tribunal é esse que ampara os bichos e desampara os homens?

E não estamos falando de quaisquer homens, mas de brasileiros que servem a pátria há inúmeras gerações. Veja os Magalhães na Bahia, que, se não me engano, licitaram a lavagem inaugural das escadarias do Bonfim para receber a comitiva de Cabral, recém-chegada de Lisboa. Veja também os Bornhausen em Santa Catarina, que, se a memória não me trai, organizaram a primeira chopada de que se tem notícia em Blumenau, e que inspiraria, décadas mais tarde, a criação da Oktoberfest.

Veja ainda os Marinho no Rio, que, se não me falha o Google, usaram a voz bíblica de Cid Moreira para anunciar ao país inteiro que reinava o paraíso sob o regime militar.

De norte a sul, esses e outros (pouquíssimos) clãs regem as vidas de milhões de súditos há mais tempo que Pedro I e Pedro II juntos.

O recorde absoluto, entretanto, pertence à dinastia de José Bonifácio de Andrada e Silva, que ficou conhecido como “patriarca da Independência”. Ela não larga a Coroa desde o período colonial e conta, até hoje, com um representante na Câmara dos Deputados, o tucano Bonifácio de Andrada, no décimo mandato consecutivo. Merecia ou não – porque aposentadoria é para os fracos – o Troféu Reforma da Previdência?

Que os vira-latas de plantão escutem o que vou dizer: nossa república dos bananas é monarquia na veia, de causar inveja à rainha da Inglaterra – Elizabeth II pode até não precisar pagar couvert artístico quando Paul McCartney ou Elton John tocam em suas festas de aniversário, mas também não tem um décimo do poder da realeza canarinha.

Nem a longevidade.

A casta que conduz a nação deve permanecer no trono por muitos e muitos anos, se depender da plebe e da nobreza. Um estudo da Universidade de Brasília (UnB) mostra que a bancada dos parentes na Câmara dos Deputados cresceu nas últimas eleições. Atualmente, os herdeiros ocupam metade das cadeiras. TODOS os parlamentares do Rio Grande do Norte, por exemplo, são familiares de políticos. É ou não é de obstruir as artérias ver tantos laços sanguíneos preservados?

A tradicional família brasileira resiste.

Deixando as ironias e arriscando as metáforas: no livro de História, o Brasil continua no capítulo das capitanias hereditárias. Quantas páginas faltam até o grito do Ipiranga? Mas o grito de fato, ainda preso na garganta das ruas. Não aquele berreiro ensaiado que virou verso do hino nacional e manteve o país umbilicalmente ligado ao passado – como herança transmitida de pai para filho.

domingo, 19 de março de 2017

Ouçam o sociólogo

Estava eu procrastinando no sofá quando topei com o sociólogo Domenico de Masi na tevê. Ele ficou mundialmente famoso ao cunhar a expressão “ócio criativo”.

Falava ao jornalista Roberto D’Ávila sobre a Operação Mãos Limpas e como ela vilanizou a classe política italiana de tal modo, que até os inocentes soçobraram: ter o nome citado numa delação era garantia de vê-lo estampado numa manchete, o que, por sua vez, equivalia a condenação em última instância, sem direito a recurso.

Quem pegasse a entrevista no meio acharia que o assunto era outra operação – aquela que aluga nossas manchetes há pelo menos três anos.

Eu sei: a Lava-Jato à bolonhesa revelou aos italianos o quanto eles afundavam no molho da corrupção. Mas não custa lembrar – e De Masi lembra – que a temporada de caça aos políticos resultou na ascensão de um “não político” à cadeira de primeiro-ministro, o magnata das telecomunicações Silvio Berlusconi, tido como administrador competente por seus eleitores. Talvez eles sonhassem ver o país tão poderoso quanto o Milan (clube de futebol que é propriedade do empresário) dos anos noventa. Não viram.

Logo o conglomerado de empresas do figurão virou alvo de processos por fraudes fiscais, e o próprio milionário foi acusado de comprar apoio de senadores no Parlamento. Ou seja: de um lado, uma das formas mais manjadas de acumular fortuna em qualquer latitude, que é evadir e sonegar (embora a mídia corporativa faça o cidadão comum acreditar que os super-ricos “chegaram lá” porque se esforçaram mais do que ele, acordaram mais cedo etc.); de outro, a... corrupção.

Para completar, Berlusconi ainda se envolveu naquelas polêmicas típicas de quem adora pegar carona nos moralismos do eleitorado: mandou cobrir a nudez de um quadro que enfeitava o palácio do governo, a cópia de uma pintura de Gianbattista Tiepolo (“La verita svelata dal tempo”) na qual uma mulher aparecia com os seios de fora.

O brasileiro que se cuide então: aqui sobra candidato cujos caninos cintilam nas capas das revistas de negócios, mas que é apenas gestor de velhas vampiragens.

Outro tema abordado por De Masi no bate-papo com D’Ávila foram os avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas – que, segundo o professor, deveriam ampliar o tempo livre para o ser humano exercitar sua criatividade. Deveriam. Porque ainda há países em que medidas como diminuir os direitos do assalariado e aumentar o número de horas trabalhadas são consideradas pontes para o futuro.

Pouco importa que fábricas na Suécia promovam o bem-estar de seus empregados reduzindo o expediente diário (e por isso vejam crescer significativamente a produtividade e o lucro), ou nações como o Japão comecem a perceber que intermináveis horas extras só incrementam o gráfico de karoshis e karojisatsus (respectivamente, as mortes e suicídios causados por jornadas de trabalho exaustivas).

Enquanto o atual desgoverno brasileiro aposta no slogan “Não pense em crise, trabalhe”, há quem adote o lema “Trabalhe menos e pense”.

De Masi é desses que privilegiam o pensamento. Não por acaso, marcou a segunda alternativa ao ser indagado, no último bloco do programa, sobre qual seria o maior desafio do Brasil no momento: combater a corrupção ou investir em educação. Repetiu ainda o que as estatísticas lhe mostraram: lugares onde existem mais cidadãos com formação universitária – e, portanto, uma cena intelectual mais dinâmica – têm índices menores de violência e maior desenvolvimento econômico. Sublinhou, porém, que o ensino não deve se alicerçar apenas nos nichos voltados para os três is (informatica, inglese e impresa), como tem sido feito na Itália e em outros países cujos dirigentes enxergam a vida como uma edição de O aprendiz. É preciso fortalecer as ciências humanas, afirmou. De acordo com o professor, só uma educação que prioriza a História e as artes protege a sociedade dos autoritarismos e populismos que de tempos em tempos a ameaçam.

Infelizmente, é o avesso disso que vemos hoje por aqui. Contrasta com os avanços registrados nos últimos anos – especialmente o maior acesso ao ensino superior, graças aos campi criados, às cotas e ao financiamento estudantil – o descaso crescente com a universidade pública. Impossível não citar a crise que atravessa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (a UERJ em que me formei e conheci minha Fernanda): servidores com salários atrasados há meses, estudantes sem bolsas, serviços básicos (como limpeza e conservação) precarizados, bandejão fechado, laboratórios sem luz, hospital universitário com atendimento comprometido por falta de funcionários e materiais etc. etc. etc.

Etc.

Some-se a isso a reforma do Ensino Médio aprovada há algumas semanas, que, diferentemente do que a propaganda anuncia – agora o aluno vai ter “mais liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação” –, dispensa as escolas de oferecer as cinco áreas de concentração, os chamados itinerários formativos: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas e sociais aplicadas; formação técnica e profissional. A nova lei é clara: as instituições não são obrigadas a disponibilizar todos os itinerários, mas, sim, pelo menos um deles. E aí resta a pergunta óbvia (nem precisa ser sociólogo para fazê-la): que “liberdade para escolher” o aluno vai ter se os colégios na sua região oferecerem só uma ou duas opções?

Terá ele a oportunidade de se tornar, quem sabe, um De Masi? Ou lhe será dada somente a chance de trilhar a carreira da mão de obra barata?

Contra tantos retrocessos, o professor sugere pequenas revoluções; a redução da jornada de trabalho e o estímulo à cultura humanista, claro, estão entre elas. A primeira revolução, no entanto, deveria ser ouvir mais gente como ele. Difícil não é. Até o corretor ortográfico do Word – que não é lá a criatura mais brilhante do mundo – passou o texto inteiro tentando me convencer a trocar De Masi por De Mais.

Alguma coisa ele escutou.

domingo, 12 de março de 2017

Dançando no escuro

Um dos raros momentos em que o protagonista de Moonlight (Chiron) parece à vontade consigo mesmo e com o mundo é na aula de dança, na escola. Diante de um espelho enorme – e, aparentemente, nem aí para as crianças que dividem a sala com ele –, o menino sacode o corpo como se o ar (e a vida) não oferecesse resistência.

Negro, pobre, gay, criado apenas pela mãe (que se droga e se prostitui) no subúrbio de Miami, o jovem – interpretado por Alex R. Hibbert na infância, Ashton Sanders na adolescência e Trevante Rhodes na fase adulta – tem uma extensa lista de motivos para se sentir marginalizado e se esconder numa casa escura e abandonada ao fugir dos colegas que o perseguem, no começo do filme.

É particularmente bonita (pois metafórica) a cena em que ele é resgatado de lá por aquele que virá a ser o pai que nunca teve: Juan surge arrancando o tapume de uma das janelas, permitindo assim que o sol finalmente incida sobre Chiron. É como se o personagem vivido por Mahershala Ali desse à luz o pequeno – “batizado” mais tarde no mar pelo mesmo Juan em outra cena lindíssima, igualmente inundada de significado.

Uma e outra sequências são marcadas ainda pelo silêncio do garoto, traço tão ensurdecedor de sua personalidade, que atravessa todo o longa. Sua dificuldade em verbalizar os sentimentos vai do instante em que é acolhido por Juan e resiste a falar (até o próprio nome), passa pelo episódio em que apanha de um amigo e atinge o ápice no último ato, quando hesita ao máximo em revelar a certo personagem o quanto este foi (e ainda é) importante para ele.

Tais silêncios ecoam a delicadeza do roteiro e da direção de Barry Jenkins, que jamais se rende aos acordes tentadores do melodrama. Não por acaso o cineasta usa uma simples frase para informar ao espectador que fim levou Juan, dispensando dessa maneira uma cena que, nas mãos de um diretor menos sutil, elevaria os decibéis de glicose a níveis estridentes. Da mesma forma, em outra passagem capital da trajetória de Chiron, o mar e a mão que roçam a areia são suficientes para que a plateia escute o alvoroço de sensações experimentado pelo protagonista.

Numa época em que parece ganhar atenção apenas quem fala mais alto (pouco importando o que é falado), traz certo alívio ver um filme como esse – que sussurra o grito de tantos excluídos – vencer um prêmio tão barulhento quanto o Oscar, ainda mais quando o superultramegafavorito da noite é um musical, talvez o gênero que mais berre sua natureza de faz de conta.

Nada contra La La Land, de que também gosto e cujas canções assobio há semanas, mas dar voz à trilha sonora de uma vida que, em outros carnavais, não ganharia os alto-falantes de Hollywood ajuda os ouvidos a reeducarem a própria audição – e a expandirem o repertório de melodias disponíveis na jukebox que toca no peito.

domingo, 5 de março de 2017

Mulheres (ainda) à beira

O goleiro condenado por matar a ex-namorada Eliza Samudio, dar sumiço no cadáver e ainda sequestrar o próprio filho foi solto pelo Supremo Tribunal Federal após cumprir menos de um terço da pena. Nem sete anos. Vai aguardar em liberdade a decisão sobre os recursos impetrados por seu advogado.

Não discuto a legalidade do habeas corpus concedido pelo juiz Marco Aurélio Mello. Nem desejo que um réu fique indefinidamente preso enquanto espera o julgamento na instância seguinte – em primeiro lugar, porque isso é ilegal e desumano; em segundo, porque só contribui para abarrotar ainda mais os já superlotados presídios brasileiros.

Mas me incomoda a brandura da lei diante dos crimes cometidos – brandura que certamente reflete a tolerância com que a sociedade encara a violência contra a mulher.

Pois bastou o sujeito deixar a cadeia para os holofotes o procurarem. De repente importa menos o delito e mais a audiência que o astro pode proporcionar. Agora ele aproveita que é a bola da vez para dar entrevistas e exibir a marca de quem “pagou caro” – palavras dele – pelo “erro” que cometeu. De cabeça empinada (como nos áureos tempos rubro-negros), afirma que não apagaria nada que aconteceu; que nem prisão perpétua traria a vítima de volta; e que só quer recomeçar a carreira. Difícil não vai ser, ainda mais no país do futebol (esporte também conhecido como “coisa de homem”): nove clubes já teriam mostrado interesse em sua contratação. A maioria, no entanto, pediu para não ter o nome revelado. Vergonha pura e simples ou – hipótese absurda, espero – receio de gerar frustração na torcida, caso o jogador não vire reforço?

O clímax são as fotos em que ele aparece ostentando o sorriso ao lado da atual esposa e tirando selfies com fãs (fãs!). A reserva no castelo de Caras já deve ter sido feita.

Se o desdém (não só) midiático pelo assassinato de Eliza – ou por qualquer ato de violência contra qualquer mulher – ainda não tinha ficado claro nessa reestreia do atleta no showbiz, ficou quando o “jornalista” Alexandre Garcia (há décadas no rádio, na tevê e agora na internet) comentou com um inacreditável “E eu com isso?” a notícia de que a atriz Jane Fonda sofrera um estupro na juventude.

A frase – responsável por alçar a criatura ao favoritismo absoluto do troféu Babaca do Ano – gerou manchete, mas não deveria gerar surpresa. Afinal, foi assinada por um senhor que sempre e abertamente apoiou um regime (o militar) célebre por torturar mulheres, com requintes que iam do choque elétrico nos órgãos genitais ao estupro propriamente dito, passando pela proibição de amamentar os filhos, também presos.

E outra: não é de hoje que esse mesmo senhor golfa misoginia nas redes sociais. Recentemente, sentenciou que a palavra “feminicídio” era “invenção de quem pensa que homicídio é matar ‘hômi’”, numa demonstração explícita e debochada de que ignora as razões que levam uma mulher a ser agredida a cada onze minutos no Brasil (ou quatro, como no recém-terminado Carnaval carioca).

Ele não é exceção, infelizmente. Em sua companhia, está o editor que estampou na capa do jornal O Globo, há dois anos, em pleno Oito de Março, charge na qual um terrorista do Estado Islâmico ameaçava decapitar a então presidenta Dilma; está o delegado que sugeriu arquivamento do inquérito contra o político que agrediu a esposa (e era candidato a prefeito do Rio de Janeiro); está o traficante que atirou na parceira porque ela se recusou a transar; está o ministro do Supremo que concedeu habeas corpus ao médico que cometeu dezenas de estupros.

Está aquele um em cada três brasileiros que culpa a mulher que frequenta baile funk ou usa roupas curtas por sofrer violência sexual.

Está, enfim, a corja que só alcançou o poder após dar um golpe na primeira mulher eleita presidenta do Brasil; está o vice que deu posse a um ministério formado apenas por exemplares do sexo masculino, desenhando sem pudores a machocracia que insiste em nos subjugar desde o estupro original, há cinco séculos; está o desgoverno que, ao cortar cargos comissionados (em nome de uma austeridade seletiva, porque em geral só atinge os mais vulneráveis), demitiu mais mulheres do que homens – mesmo sendo superior o número de cadeiras ocupadas por eles.

Às vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher, é triste constatar que as filhas deste solo ainda não encontraram a tal mãe gentil.