domingo, 12 de fevereiro de 2017

Oh captain, my captain

Ben Cash (Viggo Mortensen) não quer ver os filhos crescendo num mundo em que felicidade virou sinônimo de “Ganhei o novo iPhone no Natal”, em que ser e consumir passaram a ocupar o mesmo espaço no dicionário. Por isso, cria os seis rebentos na floresta. Lá eles plantam, caçam, malham, fazem escalada, estudam física e filosofia, leem os clássicos e não comemoram a chegada do Papai Noel – preferem celebrar a vinda do Titio Noam à Terra, num sete de dezembro.

Uma família que festeja o aniversário de Chomsky no lugar da data mais comercial do ano merece todo o meu respeito. Diz o bom velhinho que cultuas e te direi quem és: um superpai. Super mesmo, a ponto de o filme escrito e dirigido por Matt Ross ter sido batizado Capitão Fantástico – nome tão stan-lírico, que periga atrair os distraídos ao cinema para conhecer o futuro novo integrante dos Vingadores.

Mas não. O herói aqui não voa nem veste paletó de ferro. É super por tratar seus filhotes como adultos. Nunca esconde a verdade, por mais dura ou embaraçosa que seja. Pode ser o suicídio da mãe deles (o que leva a trupe a deixar seu refúgio), pode ser o significado da palavra estupro, que rende uma cena divertida com a caçula Nai (Charlie Shotwell) graças à maneira direta com que Ben tira as dúvidas da menina. O contraste dos Cash com os primos, criados como se fossem desmanchar no primeiro sopro de realidade, ilustra como muitas vezes retardamos o amadurecimento das crianças – e até as infantilizamos mais – ao cultivar tabus e preconceitos.

Não deve ser coincidência que ainda vague por aí tanto marmanjo incapaz de discutir abertamente determinados assuntos.

Outro poder que faz de Ben um superpai: ele não aceita respostas fáceis. A certa altura, pede a Kielyr (Samantha Isler) que fale sobre o romance que está lendo (Lolita, de Nabokov), e a filha lhe oferece um dos adjetivos mais preguiçosos e vazios que existem: interessante. Resposta errada, bebê. Esqueceu que o vocábulo orna a lista de termos proibidos por ser quase uma não palavra? A mocinha, então, tenta driblar a curiosidade paterna repetindo o que leu. Resposta errada de novo. Papai não quer resumo. Quer uma análise de verdade, com opinião baseada em argumentos. Tanta (saudável) insistência depois, a adolescente enfim deixa a superfície e mergulha na interpretação, revelando, entre outras coisas, que simpatizou com o professor Humbert, embora ele aja como um pedófilo. Por quê? Porque a história é contada a partir do ponto de vista dele.

(Diz aí: não seria bom dividir a mesa com familiares que, educados desde berço, debatessem arte ou política como gente grande e não empacassem no “Discordo”, no “É minha opinião” ou no “Chola mais”?)

Parentes e parênteses à parte, as impressões de Kielyr sobre o livro ecoam o que o espectador vê na telona, num instigante exercício de metalinguagem: até que ponto simpatizamos com o protagonista porque a performance carismática de Mortensen nos leva a isso? não poderíamos igualmente enxergá-lo como um irresponsável que põe em risco a segurança dos filhos ou os priva do direito de frequentar uma escola?

O avô das crianças enxerga o genro exatamente assim. Tanto é que tenta a guarda delas. Justamente por se opor a Ben quanto à criação dos pequenos, Jack (Frank Langella) tinha tudo para ser o Caveira Vermelha do nosso Capitão. Não é. O roteiro que dispensa maniqueísmos e a interpretação do veterano ator desenham o sujeito como alguém realmente preocupado e amoroso com os netos.

A sofisticação do texto escrito por Ross surge ainda em sequências como aquela na qual Rellian (Nicholas Hamilton) começa a tocar percussão e Cash, em vez de reprimir o filho, passa a batucar junto, mostrando sua capacidade de se adaptar a qualquer ritmo – ou circunstância – em prol das crias, numa sugestão discreta do roteiro sobre o desfecho da narrativa.

Outra passagem que sinaliza o cuidado do cineasta com sua obra, agora na direção, traz Ben entoando um discurso resignado, aparentando desistir de certa missão. A fala inteira é dita enquanto o encaramos pelo retrovisor do ônibus que conduz – uma pista elegante de que aquele não é o superpai com o qual já nos acostumamos, mas seu eu invertido. Logo que ele se volta para os filhos, manda às favas o palavrório típico dos conformados e acelera rumo a seu destino.

Um destino que, se por um lado tem a ver com a morte de uma pessoa tão amada, por outro aponta para o nascimento de uma sociedade menos vulnerável à kryptonita do consumo e da alienação, mais atenta a joias (do infinito) como a sustentabilidade e o conhecimento – uma utopia que talvez jamais seja alcançada, mas que um senhor fantástico, capaz de se esticar indefinidamente para abraçar seus descendentes, insiste que eles continuem perseguindo.

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