domingo, 26 de fevereiro de 2017

A Alvissareira

Estou pensando em abrir uma lojinha. Coisa modesta, que eu não sou de querer joalheria favorita de político para ganhar isenção fiscal. A ideia é até trabalhar com joias e outros tesouros, mas não do tipo que orna primeiras-damas. O lugar há de lembrar um daqueles quinquilhódromos que só negociam raridades, como o muquifo onde o senhor Peltzer comprou um mogwai para o filho no Natal ou o cafofo onde Harry Potter foi escolhido por sua varinha.

As relíquias, no entanto, não serão objetos empoeirados de saudade. Não espere encontrar lá o rádio em que a bisa ouvia O direito de nascer, o cuco em que o biso contava as horas para rever o broto, a Olivetti com a qual a vovó datilografava os memorandos ditados pelo chefe, a Caloi com a qual o vovô corria o bairro vendendo sonhos de porta em porta.

Em vez disso, espere encontrar entre as prateleiras – diariamente lustradas com utopia – um smartphone que faz jus ao nome por só receber e enviar notícias verdadeiras e relevantes. Ele vem com um chip que exclui automaticamente textos não assinados (em geral, compartilhados por sites sem expediente), jornalistas declaradamente apaixonados por vices golpistas e manchetes sobre a Bruna Marquezine na fila do pão.

Espere encontrar ainda um relógio que encurta o dia quando o dono tenta encaixar mais uma reunião no escritório, mais um aparelho na musculação, mais uma DR na noite – e que estica as horas quando ele resolve escrever um poema, quando ele vai ao cinema com os filhos, quando ele tira o amor de sua vida para dançar.

Uma seção particularmente especial será a dos teclados inteligentes. Praticamente um Bumblebee doméstico, o equipamento vem com um dicionário na memória que não só corrige qualquer deslize ortográfico no momento da digitação, como também sugere aos seus usuários palavras que eles pouco ou nunca utilizam no dia a dia. Ultimamente, verbetes como “diálogo” e “empatia” têm sido muito recomendados. Outra vantagem dos TIs é que eles têm um dispositivo que trava as teclas sempre que o sujeito decide redigir um textão com conteúdo racista, xenófobo, misógino, homofóbico etc.

Pena que essa tecnologia não estava disponível antes do discurso de posse do Trump.

A Alvissareira ainda terá um espaço para os clientes deixarem suas bicicletas – porque a gerência pretende desestimular o uso do automóvel – e um café com aquelas poltronas tão aconchegantes quanto a casa dos avós aos domingos – onde os amigos poderão esquecer o presente enquanto saboreiam uns futuros polvilhados de açúcar e canela.

Só preciso achar um chef cuja especialidade sejam sonhos.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Retrocesso a jato

Companhias aéreas americanas acabam de criar uma classe inferior à econômica: a econômica básica. Os passageiros que optam por ela só têm direito a uma bagagem de mão, a ser acomodada sob o assento; não podem usar o maleiro superior. Também não podem escolher o lugar. Essas novidades vão na mesma direção da cobrança (por fora) da comida servida a bordo – já comum em alguns países – e da prometida oferta de lugares em pé (!), com a qual se pretende ampliar a venda de tickets por voo. Segundo as empresas, essa segmentação da cabine em subclasses é uma “tendência” que visa “maximizar a receita” e “propiciar grande valor” aos acionistas nos próximos anos.

Do jeito que as coisas estão, não vou me espantar se num futuro próximo inventarem uma tarifa extra para o viajante ter acesso ao banheiro ou à máscara de oxigênio – quiçá ao próprio oxigênio. É assim que funciona um mundo cada vez mais regido pela lógica do lucro, onde governos são patrocinados por corporações (entre elas as companhias de aviação): nele o direito de hoje pode ser o privilégio de amanhã.

Nele não surpreende um jornal de grande circulação – que nada mais é que uma empresa sustentada por outras empresas, os anunciantes – botar aspas na palavra “direitos” ao se referir às férias e ao décimo terceiro, como se ambos fossem privilégios de uma elite e pudessem ser extintos a qualquer momento, sob a alegação de que atrapalham o crescimento econômico porque diminuem a competitividade do país frente a nações cujos trabalhadores não contam com essas “regalias” (minha vez de botar aspas).

Não esqueço o dia em que esse mesmo jornal lembrou que certos países asiáticos conseguiam ser mais competitivos do que os europeus por não terem restrição legal para o número de horas trabalhadas. Provavelmente os donos da publicação ainda estavam sob o efeito do slogan “Online, on time, full time”. Certamente desconheciam o que significa para um francês o flanar, ou para um espanhol a sesta.

Ainda nesse mundo em que leitores são convencidos pelo noticiário de que seus direitos são privilégios, não surpreende uma revista de alcance nacional – igualmente uma empresa sustentada por outras – estampar na capa um septuagenário Mick Jagger e sugerir que continuar trabalhando até a pós-velhice pode ser uma ótima ideia, como se todo brasileiro contasse com a fortuna do inglês ou pudesse escolher quando pendurar a guitarra; e mais, como se todo brasileiro alcançasse os 65 anos que a reforma da Previdência pretende estabelecer como idade mínima para a aposentadoria.

Só um dado: na periferia da cidade de São Paulo, a expectativa de vida em 2015 – em razão da violência e do difícil acesso a leitos hospitalares – não chegava aos sessenta anos. Interpretem.

Interpretem ainda um ministro da Saúde que – num momento de crise econômica, quando deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis, e não o contrário – critica o tamanho do Sistema Único de Saúde (SUS) e afirma que os direitos previstos para a área na Constituição são financeiramente insustentáveis. Interpretem também um ministro do Supremo que – nesse mesmo momento de crise, quando, repito, deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis – defende a privatização do ensino superior com o argumento de que o Estado não tem mais condições de custear integralmente a educação, devendo priorizar, assim, os níveis fundamental e médio.

Minha humilde interpretação: no orçamento não cabem o SUS (que atende os mais pobres) nem a universidade pública (hoje frequentada por muitos alunos de baixa renda, os cotistas) porque têm de caber, prioritariamente, bilhões de reais para socorrer operadoras de telefonia à beira da falência e reajustar os já altos salários do Judiciário. Ou: é para isso que serve congelar investimentos em saúde e educação por duas décadas – garantir verbas para os amigos empresários e para os colegas magistrados, que hão de interpretar as leis a favor desses e de outros privilegiados de sempre.

Não por acaso, os oito homens mais ricos do planeta concentram o mesmo patrimônio dos 3,6 bilhões mais pobres. A “tendência” seguida não apenas por aquelas companhias aéreas – proteger os acionistas da casa-grande à custa do bem-estar e da segurança de quem viaja na senzala – só ajuda a aprofundar essa desigualdade; e, se não for revertida, vai levar a humanidade ao século passado para repetir, como farsa, uma famosa tragédia – protagonizada não por um avião, mas por um navio que diziam ser inafundável, onde sobrava espaço para os luxos de uma meia dúzia.

E faltava para os botes que salvariam as vidas da maioria.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Oh captain, my captain

Ben Cash (Viggo Mortensen) não quer ver os filhos crescendo num mundo em que felicidade virou sinônimo de “Ganhei o novo iPhone no Natal”, em que ser e consumir passaram a ocupar o mesmo espaço no dicionário. Por isso, cria os seis rebentos na floresta. Lá eles plantam, caçam, malham, fazem escalada, estudam física e filosofia, leem os clássicos e não comemoram a chegada do Papai Noel – preferem celebrar a vinda do Titio Noam à Terra, num sete de dezembro.

Uma família que festeja o aniversário de Chomsky no lugar da data mais comercial do ano merece todo o meu respeito. Diz o bom velhinho que cultuas e te direi quem és: um superpai. Super mesmo, a ponto de o filme escrito e dirigido por Matt Ross ter sido batizado Capitão Fantástico – nome tão stan-lírico, que periga atrair os distraídos ao cinema para conhecer o futuro novo integrante dos Vingadores.

Mas não. O herói aqui não voa nem veste paletó de ferro. É super por tratar seus filhotes como adultos. Nunca esconde a verdade, por mais dura ou embaraçosa que seja. Pode ser o suicídio da mãe deles (o que leva a trupe a deixar seu refúgio), pode ser o significado da palavra estupro, que rende uma cena divertida com a caçula Nai (Charlie Shotwell) graças à maneira direta com que Ben tira as dúvidas da menina. O contraste dos Cash com os primos, criados como se fossem desmanchar no primeiro sopro de realidade, ilustra como muitas vezes retardamos o amadurecimento das crianças – e até as infantilizamos mais – ao cultivar tabus e preconceitos.

Não deve ser coincidência que ainda vague por aí tanto marmanjo incapaz de discutir abertamente determinados assuntos.

Outro poder que faz de Ben um superpai: ele não aceita respostas fáceis. A certa altura, pede a Kielyr (Samantha Isler) que fale sobre o romance que está lendo (Lolita, de Nabokov), e a filha lhe oferece um dos adjetivos mais preguiçosos e vazios que existem: interessante. Resposta errada, bebê. Esqueceu que o vocábulo orna a lista de termos proibidos por ser quase uma não palavra? A mocinha, então, tenta driblar a curiosidade paterna repetindo o que leu. Resposta errada de novo. Papai não quer resumo. Quer uma análise de verdade, com opinião baseada em argumentos. Tanta (saudável) insistência depois, a adolescente enfim deixa a superfície e mergulha na interpretação, revelando, entre outras coisas, que simpatizou com o professor Humbert, embora ele aja como um pedófilo. Por quê? Porque a história é contada a partir do ponto de vista dele.

(Diz aí: não seria bom dividir a mesa com familiares que, educados desde berço, debatessem arte ou política como gente grande e não empacassem no “Discordo”, no “É minha opinião” ou no “Chola mais”?)

Parentes e parênteses à parte, as impressões de Kielyr sobre o livro ecoam o que o espectador vê na telona, num instigante exercício de metalinguagem: até que ponto simpatizamos com o protagonista porque a performance carismática de Mortensen nos leva a isso? não poderíamos igualmente enxergá-lo como um irresponsável que põe em risco a segurança dos filhos ou os priva do direito de frequentar uma escola?

O avô das crianças enxerga o genro exatamente assim. Tanto é que tenta a guarda delas. Justamente por se opor a Ben quanto à criação dos pequenos, Jack (Frank Langella) tinha tudo para ser o Caveira Vermelha do nosso Capitão. Não é. O roteiro que dispensa maniqueísmos e a interpretação do veterano ator desenham o sujeito como alguém realmente preocupado e amoroso com os netos.

A sofisticação do texto escrito por Ross surge ainda em sequências como aquela na qual Rellian (Nicholas Hamilton) começa a tocar percussão e Cash, em vez de reprimir o filho, passa a batucar junto, mostrando sua capacidade de se adaptar a qualquer ritmo – ou circunstância – em prol das crias, numa sugestão discreta do roteiro sobre o desfecho da narrativa.

Outra passagem que sinaliza o cuidado do cineasta com sua obra, agora na direção, traz Ben entoando um discurso resignado, aparentando desistir de certa missão. A fala inteira é dita enquanto o encaramos pelo retrovisor do ônibus que conduz – uma pista elegante de que aquele não é o superpai com o qual já nos acostumamos, mas seu eu invertido. Logo que ele se volta para os filhos, manda às favas o palavrório típico dos conformados e acelera rumo a seu destino.

Um destino que, se por um lado tem a ver com a morte de uma pessoa tão amada, por outro aponta para o nascimento de uma sociedade menos vulnerável à kryptonita do consumo e da alienação, mais atenta a joias (do infinito) como a sustentabilidade e o conhecimento – uma utopia que talvez jamais seja alcançada, mas que um senhor fantástico, capaz de se esticar indefinidamente para abraçar seus descendentes, insiste que eles continuem perseguindo.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Pé na estrada 2

Eu no Camboja, com selva por todos os lados? Não podia ser real. Tive certeza disso quando aquelas raízes imensas sobre o templo de Ta Prohm (Google nele, se você não sabe do que estou falando) começaram a deslizar na minha direção cheias de más intenções e a Lara “Tomb Raider” Croft apareceu para me salvar.

Angelina-Jolie-estende-as-mãos-para-a-sua-pessoa é aquele momento em que você cai do colchão.

Aí percebe que aquele país minúsculo, espremido entre a Tailândia e o Vietnã, não só passou a integrar seu repertório onírico, como ainda virou o milésimo segundo destino obrigatório daquela sua lista de mil e um lugares para conhecer antes do último traslado. Culpa de Martha Medeiros e seu Um lugar na janela 2: relatos de viagem.

Assim como no primeiro volume – igualmente responsável por me fazer acumular milhas durante o sono, e sobre o qual também escrevi –, a gaúcha reúne experiências suas longe de Porto Alegre. Desta vez, o itinerário inclui desde um show dos Rolling Stones no Hyde Park até um retiro em Cascais, passando por uma visitinha a um santuário asiático em que os devotos depositam milhares de pênis de madeira.

Há pacotes para todas as taras.

Mas aqui eles não são tão importantes quanto na vitrine das agências. O que (mais) conta são as personagens em que a autora se transforma a cada viagem: a excursão ao México não tiraria o fôlego sem a aventureira que se arrisca nos subterrâneos de uma reserva florestal; as férias na Sicília não teriam a mesma doçura sem a mamma que resgata da mendicância a filhota mochileira; os dias no Uruguai não seriam tão despojados sem a alma hippie que cruza as ruas de terra batida de Punta del Diablo.

Mais do que descobrir lugares, Martha descobre outras Marthas.

Com a sensibilidade de quem sabe que tocar um chão distante vale mil fotos, mas trocar com os que vivem nele vale o jet lag, elas mostram ao leitor que viajar é uma ótima oportunidade de – mais do que dar férias àquele eu previsível a que a rotina nos reduz – autorizar a decolagem daqueles eus confinados aos lugares-comuns do cotidiano.

Seja com a Martha que degusta a Riviera francesa, seja com a Martha que consome Nova York – mas sempre com a Martha que traduz os cardápios mais sofisticados usando a sintaxe mais simples –, viajar é também ler o outro, é aprender um jeito novo de saudar o tempo, uma forma diferente de vestir o instante, um modo inesperado de temperar as prioridades, um maneira surpreendente de encarar o humano – e com isso exercitar a empatia, expandir o mundo e ampliar perspectivas.

Impossível não desembarcar na última página com a sensação de voltar para casa depois de uma viagem que foi além do descanso e da diversão; de uma viagem cujo excesso de bagagem não pesa nem gera multa: é apenas a certeza de que não somos mais tão turistas de nós mesmos e dos demais hóspedes deste resort chamado Terra.