domingo, 27 de novembro de 2016

Herói

Eu não tenho nada a esconder, diz Lindsay (Shailene Woodley) a certa altura de Snowden, o mais recente filme de Oliver Stone.

Usado por muita gente para defender a vigilância em massa praticada por potências como os Estados Unidos, o argumento esfarela quando Snowden (Edward Snow..., digo, Joseph Gordon-Levitt) conta para a namorada que sabe que ela bisbilhota os perfis de outros caras nas redes sociais. De repente, uma ruga de indignação risca o rostinho bonito da moça, desenhando nele a palavra privacidade.

Podemos não ter nada a esconder – mas temos hábitos, manias, segredos que jamais revelaríamos se nos fosse dada a chance de guardá-los apenas conosco.

Foi justamente o direito de escolher o que tornar público sobre a própria vida que acabou deletado quando a Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana – em nome da... segurança – passou a monitorar o mundo inteiro. O mundo inteiro mesmo: incluindo você, seu vizinho paneleiro, sua ex-presidenta e até aquela famosa empresa brasileira do ramo do petróleo. Ingenuidade sua achar que o alvo era só o barbudinho com nome árabe que vende quibe perto da sua casa.

Ninguém escapa desse Big Brother de que todos nós participamos, à nossa revelia, e em que não recebemos cachê, muito menos corremos o risco de ficar milionários.

Mas e o combate ao terrorismo? Mera desculpa para o controle econômico e social, sublinha o ex-funcionário da NSA e da CIA (a Agência Central de Inteligência) em sequência-chave do longa-metragem – longa que acompanha sua trajetória desde a saída das Forças Armadas por problemas de saúde (e posterior admissão naqueles órgãos) até o momento em que ele resolve compartilhar o que sabia com o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a cineasta Laura Poitras (Melissa Leo).

Não custa lembrar que essa vocação do Tio Sam para meter o bedelho – e escutas – na soberania alheia é antiga. Isso fica evidente, por exemplo, no documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares, que daria uma ótima sessão dupla com o filme de Stone e é altamente recomendável para os brasileiros, especialmente os patrioteiros, que carregam no peito e no gogó muito orgulho, muito amor.

De volta ao thriller stoneano, é importante observar como o diretor desmonta a imagem de judas que Snowden tem para muitos conterrâneos (e para quem subtitulou a fita, aqui no Brasil, com aquele cafona “herói ou traidor”). O rapaz é retratado como um sujeito que sempre quis servir seu país: ele sofre por ter de abandonar o Exército em razão das lesões causadas pelos exercícios militares; ele afirma que os Estados Unidos são a maior nação do mundo, num teste a que é submetido para entrar na CIA; ele se incomoda quando Lindsay critica Bush, o commander-in-chief na época em que a conhece.

Snowden delata a espionagem não porque seja contra a América ou seus valores, mas porque deseja preservar alguns dos pilares que a sustentam: de um lado, o óbvio direito à privacidade; do outro, o de qualquer cidadão questionar as atitudes do governo. Ao defender essas premissas, ele entende estar, mais uma vez, a serviço de seu país. Essa coerência – que permeia o arco dramático do personagem – só fortalece a simpatia e a admiração que o espectador desenvolve por ele.

Nem precisava o roteiro recorrer ao clichê da cena-em-que-a-plateia-levanta-e-aplaude-de-pé-o-herói para salientar a relevância de seu protagonista.

Só o fato de Snowden ter deixado para trás família, namorada, amigos, carreira promissora, bom salário, a liberdade de andar por onde quisesse (inclusive sua terra natal), somado ao tamanho do inimigo que ele enfrentava – o que se materializa na sequência em que Corbin O’Brian (Rhys Ifans) surge imenso e ameaçador na tela, à la Chanceler Sutler em V de vingança –, já seria motivo suficiente para não duvidarmos da força daquele moço, franzino apenas por fora.

Espiando a aventura vivida por ele e pensando na realidade brasileira – sufocada por um “governo” que exige os nomes de alunos que ocupam escolas em protesto contra medidas autoritárias, ou que perde tempo tentando bloquear os emojis de vômito em notícias relacionadas ao seu “presidente” no Facebook, numa demonstração clara de que não consegue conviver com a democracia –, me pergunto como cada um de nós gostaria de enxergar a si mesmo daqui a alguns anos...

... como alguém feito Snowden – que se rebelou contra um sistema opressor e já tem seu lugar entre os heróis de nosso tempo – ou alguém feito o engenheiro interpretado por Nicolas Cage (Hank Forrester), que se resignou diante de uma injustiça e acabou exilado dentro do próprio país, numa sala cheia de bugigangas sem serventia (ele entre elas), esquecido numa espécie de almoxarifado da História?

Responder a essa pergunta não deveria ser tão difícil quanto solucionar o cubo mágico que o jovem programador carrega como amuleto.

domingo, 20 de novembro de 2016

WhatsApp

Caiu na minha mão o celular de Seu Fulano e eu não resisti: bisbilhotei mesmo o WhatsApp. Como não uso o aplicativo – ainda que dez entre nove amigos insistam que eu não sei o que estou perdendo –, bateu aquela vontade de saber o que faz um ser humano abrir mão da sessão de cinema pela qual pagou ingresso (caro) para ficar checando recados a cada meio segundo. No escuro.

A mensagem mais recente trazia a “““notícia””” (um símbolo para aspas infinitas, por favor) de que cientistas brasileiros tinham descoberto uma barata assassina. Dona de veneno tão mortal quanto o do escorpião, a monstra não só era capaz de matar um adulto com apenas uma picada, como já havia se espalhado por todo o país. Pobres de nós: à mercê da dengue, da zika, do temer e, agora, de um serial killer com anteninhas.

O texto não tinha fonte, nem identificava os tais cientistas brasileiros. Mas o que são reles indícios de fraude perto do horror causado por criatura tão repugnante?

Só uma fobia severa para explicar a paralisia cerebral diante de um fake desses. A moluscofobia, por exemplo. Dessa moléstia, sofria uma das amigas de Seu Fulano. Cinco ou seis links enviados por dia com A VERDADE sobre as propinas recebidas por certo ex-presidente da República. Um deles continha uma foto do político tomando sol numa praia da Bahia – prova cabal, segundo a tal amiga, de que a Odebrecht (com sede em Salvador) reformara o Oceano Atlântico inteiro só para ele.

Dê um desconto à moça: até o experiente Alexandre Garcia já caiu na rede. Recentemente, o jornalista global se deixou levar pelo papo de um guia turístico (“O palácio à minha esquerda pertence a Julio Iglesias, a chácara à direita foi comprada pela Beyoncé”) e espalhou por aí, sem verificar a informação, que o mesmo ex-presidente era proprietário de uma mansão em Punta del Este, no Uruguai; depois, ao ser alertado sobre a natureza boática do furo, corrigiu-se.

Essa moluscofobia ainda acaba com o Brasil. (Com o jornalismo, já acabou.)

Outra mensagem que arrepiou meus neurônios mostrava um vídeo com óvnis sobrevoando uns arranha-céus. O registro teria sido feito em Hong Kong. Um especialista em ufos – de nome impronunciável e do qual não havia uma linha no Google – alertava sobre o perigo iminente de uma invasão alienígena e recomendava que as pessoas estocassem água e comida. Curioso é que outros coleguinhas tinham compartilhado a mesma mensagem, com o mesmo vídeo e os mesmos arranha-céus. Só a legenda variava: Nova York, Londres, Tóquio, Cidade do México...

Corri até a despensa de Seu Fulano e fiquei bem preocupado com a quantidade de galões d’água e alimentos não perecíveis armazenados. Detalhe: ele morava sozinho.

Corri mais alguns contatos no aplicativo. Quase verti uma lágrima ao ver o cadáver de fada encontrado numa cidadezinha inglesa (afinal, I do believe in fairies). Rolou uma vontade de provar a melancia azul cultivada no Japão, ainda que eu tenha restrições ao sabor meio amargo do Photoshop. Bem que eu queria acreditar no informe segundo o qual a eleição de Trump não passava de uma infeliz campanha publicitária para divulgar um novo bronzeador, e o milionário não assumiria de fato a presidência dos Estados Unidos. Por pouco não levei fé, entretanto, na manchete que dizia que o Planalto cogitava privatizar o ar nas grandes cidades e permitir a cobrança de tarifas – medida plausível se vinda dos nossos atuais (des)governantes, ainda mais num momento de escassez de oxigênio em tantas mentes.

Celular de volta às mãos do dono, restou a certeza de que não era eu quem estava perdendo alguma coisa, como os amigos insistiam. Eram eles. A noção. Da realidade.

domingo, 13 de novembro de 2016

A diferença é a gaiola

Era uma vez um ratinho muito fofo que vivia sozinho numa gaiola enoooorme e praticamente vazia. Suas únicas companheiras eram duas garrafas de plástico sem graça. A primeira só tinha água; a segunda, água e heroína. Um belo dia, o ratinho bebeu a mistura. E bebeu de novo. E bebeu mais. E se viciou. Noutro dia (não tão belo), o ratinho morreu.

Era uma outra vez um ratinho igualmente fofo que vivia numa gaiola igualmente enoooorme, só que cercado de queijo, de bolas, túneis e escorregadores coloridos, de outros ratinhos (e ratinhas). Praticamente a Disneylândia. Ah, aquelas duas garrafas de plástico sem graça também estavam lá. Uma com água, a outra com água e heroína. Um belo dia, os ratinhos beberam a mistura. Mas não beberam de novo. Não beberam mais. Não se viciaram. E viveram felizes todos os belos dias de suas vidas.

Não, não são histórias da carochinha, queridos leitores. São apenas um resumo de dois experimentos realizados em laboratório já há algumas décadas. Mais detalhes sobre ambos podem ser encontrados no livro do jornalista britânico Johann Hari Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs.

Outra história também interessante sobre vício vem da Guerra do Vietnã, durante a qual um em cada cinco soldados americanos consumia heroína. A revelação, feita pela imprensa na época, gerou o temor nos Estados Unidos de que, terminado o conflito, o país tivesse de conviver com milhares de drogados. Não foi o que aconteceu: nove em cada dez soldados “viciados” largaram a heroína assim que voltaram para casa.

Convenhamos: se você fosse enviado a uma selva distante, coagido a lutar por uma causa que não a sua, obrigado a matar; se você corresse o risco de perder a vida a qualquer momento, visse de perto a morte de companheiros, lidasse com corpos mutilados diariamente – injetar uns mililitros de heroína na veia para fugir desse cenário não seria uma ideia tão mirabolante assim. Uma ideia que dificilmente passaria por sua cabeça se você estivesse em seu lar doce lar, ao lado de sua família e de seus amigos – se você estivesse, em outras palavras, na sua Disneylândia.

Ainda em outras palavras: quando botamos o ser humano na primeira gaiola – estimulando seu isolamento em relação ao que está ao redor –, aumentamos muito as chances de ele buscar uma fuga ou pelo menos um alívio. Uns procuram essa anestesia contra a realidade nas redes sociais, outros na pornografia, no álcool ou no jogo. E há ainda aqueles que a procuram nas drogas ilícitas.

Posso estar enganado, mas, se o que aproxima as pessoas dos entorpecentes e as torna dependentes é menos a composição química deles e mais a relação delas com o mundo (o fato de se conectarem ou não com ele e com os seres que o habitam), não ajuda nem um pouco no combate às drogas a mais recente tentativa da União e de alguns estados, como o Rio de Janeiro, de desmantelar nosso ainda fragilíssimo Estado de bem-estar social – nossa ainda megaprecária Disneylândia.

Ou alguém acha que o que ajuda a construir aquela segunda gaiola é investir menos em saúde e educação e tornar ainda mais difícil a vida de quem precisa de escolas e hospitais públicos? é impor um ajuste fiscal que protege os ricos e castiga os pobres? é aumentar a jornada de trabalho e diminuir ainda mais o convívio entre pais e filhos? é fechar restaurantes populares e colocar em risco a única refeição diária de moradores de rua e desempregados? é suspender o aluguel social e despejar de suas moradias temporárias as vítimas de desastres naturais (como o da Região Serrana e o do Morro do Bumba, em Niterói)? é acabar com programas de complemento de renda e devolver à miséria milhares de pessoas? é confiscar trinta por cento do salário de servidores públicos (inclusive aposentados) e prejudicar ainda mais quem já não tem recebido seu pagamento em dia?

Nem vou citar o caso dos que estão do lado de lá da gaiola (os presidiários), aos quais já é imposta uma rotina de maus-tratos e sem perspectiva de reintegração à sociedade.

Moral da história: talvez tudo isso explique, em parte, a recente ascensão política de tantos pastores; enquanto deixamos nossos ratinhos cada vez mais abandonados à própria sorte, crivellas e malafaias fazem culto na cadeia e levam conforto espiritual às comunidades ignoradas pelo Estado – distribuem lá, entre os mais vulneráveis, suas garrafas plásticas cheias de uma água aparentemente pura.

Uma água certamente batizada.

domingo, 6 de novembro de 2016

Aos estudantes, com carinho

Jovens vão a uma igreja para ter suas canetas abençoadas antes do Enem (o Exame Nacional do Ensino Médio). O fato é registrado numa entrada ao vivo no jornal da hora do almoço, na emissora campeã de ibope no país. Uma ajudinha do céu nunca é de mais, diz o apresentador. Bênção é sempre importante, completa a repórter, que termina a matéria informando o horário das próximas missas do dia.

A mesma imprensa que critica um prefeito ou um deputado por misturar política e religião mistura, sem o menor pudor, jornalismo e religião. Cinismo deveria ser pecado.

Mais tarde, no jornal da noite, líder de audiência há séculos, é exibida uma reportagem com adolescentes acampados na fila do show de Justin Bieber, que só vai acontecer (pasmem) em março do ano que vem – daqui a CINCO MESES. A repórter surge dentro da barraca dos fãs e anuncia, toda pimpona, a razão de estarem ali, no meio da rua, em plena madrugada. Explica que meninas e meninos se revezam, cumprem uma escala. Eles têm que estudar, ela adverte, certamente receosa da possibilidade de a notícia dar a impressão de que são irresponsáveis ou desocupados. Diz ainda que, para fazer a hora passar mais rápido, a turma apela para jogos (a câmera foca uma adedanha), troca ideias sobre o novo crush (a paixonite do momento) e canta músicas do ídolo.

A mesma imprensa que não tem tempo para ouvir os jovens acampados nas escolas tem tempo para ouvir os jovens acampados na fila do show. Hashtag prioridades.

Agora imagine que louco seria se o mesmo jornal da hora do almoço – que tantas vezes nos fez sentir os piores da classe, diante daqueles japinhas fofos passando pano no chão e servindo merenda nas “exemplares” escolas nipônicas – entrasse ao vivo num desses colégios ocupados por “baderneiros” e flagrasse alunos varrendo o pátio, lavando os banheiros, fazendo pequenos consertos, cozinhando a própria refeição.

Que doido seria se o mesmo jornal da noite – que tantas vezes entrevistou aquele especialista em educação que é diretor-executivo de um banco (oi?) – entrevistasse os voluntários que oferecem atividades extracurriculares (de plantio de horta a oficinas de grafite e teatro) nas unidades ocupadas, entre os quais professores que doam sua garganta não só para debater temas como ditadura, racismo, feminismo e identidade de gênero, mas também para promover aulões para vestibulandos.

Que insano seria se o principal âncora do mesmo jornal da noite – que certa vez leu em tom dramalhático uma transcrição de áudio da ex-primeira-dama mandando que os vizinhos “enfiassem as panelas no...” – lesse com voz solene a nota na qual os alunos do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, se comprometiam a não interferir no Enem por prezarem o “direito de todos e todas as estudantes de realizarem o exame”.

Segunda época já! para quem não aprova os secundaristas que cabulam a inércia do resto da população e metem a caneta vermelha em retrocessos – como a reforma do ensino médio via medida provisória e a PEC 241 (agora 55, no Senado), que congela investimentos sociais por vinte anos. Segunda época já! para quem não aprova a aluna paranaense que tem dado aula de consciência política a parlamentares Brasil afora. Segunda época já! para quem não aprova o aluno-problema que, de repente, tira dez em solidariedade ao ser o primeiro a se oferecer para limpar os banheiros do colégio. Segunda época já! para quem não aprova os pais que, em razão das ocupações, se (re)aproximaram da escola e ajudaram a ressignificar a expressão “comunidade escolar”.

Não posso deixar o sinal bater sem lembrar a sequência final do já clássico Sociedade dos poetas mortos, na qual o mestre John Keating (Robin Williams) é homenageado por seus alunos. Só que aqui somos nós – professores, pais, cidadãos lúcidos de todo o país – que subimos nas carteiras em respeito e reverência a vocês, estudantes.

Oh captains, my captains.