domingo, 9 de outubro de 2016

Né brinquedo não

Faltou leite materno na dieta dos nossos ancestrais.

Só isso para explicar tanto marmanjo – e marmanja – crente, crente de que saia justa e decote são convites para o estupro. Só isso para explicar tanta milícia maior de idade incomodadinha com casais gays que trocam bitocas em público. Só isso para explicar tanto tio e tanta vó saudosos de um tempo em que racismo existia apenas na fazenda do Leôncio, e golpe era só o nome feio que se dava à Revolução.

Papais e mamães: o Dia das Crianças está quase aí e é preciso tomar mil cuidados para que os bebezuscos de hoje não se tornem os bolsonarinhos de amanhã.

É por isso que peço aos senhores e às senhoras, en-ca-re-ci-da-men-te, que pensem muito bem nos presentes que vão dar a seus filhotes na próxima quarta-feira. Melhor ainda: pensem nos presentes que vocês têm dado a eles diariamente. Porque a raça humana não merece conviver, daqui a duas ou três décadas, com outra geração que faz de um Trump o seu John Lennon.

Uma primeira dica? Nada de cair na tentação de botar um smartphone nas mãos de seu recém-nascido e correr para o Netflix. O pimpolho mal chegou ao mundo; ele precisa é de carinho, cheiro, cócegas – conexões que nem o mais poderoso wi-fi vai proporcionar. Contato físico, já diziam até os manuais de chocadeira, ajuda a estabelecer e fortalecer vínculos, além de contribuir para o desenvolvimento dos neurônios.

Esses que andam quase tão empoeirados quanto aqueles livros na estante.

Já passou da hora de apresentar a seu rebento a Dona Benta, o Cebolinha, a Miss Marple, o Harry, a Mafalda, o Frodo, a Alice, o Pan. Lembro até hoje de mâmi me apresentando o Zezé – menino que conversava com um pé de laranja lima. Desde então, sei que é possível escutar não só as pessoas, mas também as árvores, os ventos, as chuvas, os travesseiros, as janelas, os abraços, as saudades, os diferentes e as diferenças.

Falando em diferentes e diferenças, que tal aproveitar o feriado e levar o pequeno príncipe e a cinderelinha até aquela praça, aquela praia frequentada por amiguitos que não moram no mesmo condomínio encantado? que não foram à Disney dezesseis vezes? que nunca ouviram falar em aula de jazz e cheesecake de morango? Sair da bolha oxigena os conceitos e asfixia os preconceitos.

Outro ótimo passeio é a boa e velha loja de brinquedos. Mas nem pensar em levantar um muro entre o corredor das bolas e o das bonecas, entre a seção dos carrinhos e a das cozinhas. Ninguém aqui vai querer que a Nanda deixe de virar a nova Marta ou o novo Senna – e o Fabinho, um pai-pra-toda-obra ou o novo Masterchef Brasil – só porque alguém etiquetou os passatempos infantis.

Um dos mais adequados a crianças de zero e cem anos – diz estudo – é a dança das cadeiras. Não aquela em que eu continuava o balé mesmo após a música parar. Mas aquela em que o guri se coloca no lugar da colega excluída pela turma porque é gordinha; do vô que entra no busão e não encontra assento vazio; do garoto que mora na rua e não tem nem uma cama para dormir; da professora que tenta falar, perde a voz e ainda assim não é ouvida pelos alunos. O Ministério da Saúde adverte: olhar com os olhos do outro reduz a incidência de cataratas.

E amamentar as crias com uma dose diária de empatia aumenta as chances de um futuro habitado por adultos de verdade – que não só cultivem o respeito pelo outro (e pela outra) ou ignorem com quem a vizinhança troca saliva, mas, principalmente, sejam sensíveis ao que acontece além do próprio cercadinho.

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