domingo, 30 de outubro de 2016

Monstros S. A.

Já encheu de teias de aranha aquele fla-flu que ressurge feito Jason todo Halloween e – em vez de doces ou travessuras – exige que a gente escolha o Saci ou o Drácula, a Iara ou a Malévola, o Boitatá ou o Freddy. Ô bate-boca mais trouxa. Prefiro mil vezes a turma do arrepio inteirinha no caldeirão da Cuca dançando “Thriller”. (Leva uma mordida de zumbi quem errar a coreografia.)

A antropofagia me encanta: mas essa que devora a exclusão e fortalece a inclusão, não aquela que devora cérebros e dementa o senso crítico. Não aquela que devora as bruxas gringas e expele as cópias mais paraguaias de Bellatrix Lestrange ou Elvira a Rainha das Trevas – como certa jurista que vê, na instalação de uma base militar russa na Venezuela, uma iminente invasão comunista no Brasil.

Nunca antes na história fez tanto sentido a máxima que diz mais ou menos assim: quanto mais o país reza (e paga dízimo), mais assombração aparece.

De repente, uma horda de múmias invadiu ruas e redes. É incrível como tais criaturas se deixam enrolar dos pés à cabeça por (1) manchetes sensacionalistas (sempre à procura de um sarcófago quentinho, as preguiçosas não leem as respectivas matérias, que em geral mostram uma realidade bem mais complexa do que os títulos fazem parecer), (2) notícias falsas (por causa da retirada de massa cinzenta durante a mumificação, as ingênuas jamais suspeitam delas, nem quando a fonte é anônima e nenhum jornal de grande circulação ou megaportal da internet as publicou) e (3) memes toscos (pela mesma razão do item 2, as bobas acreditam que uma frase entre aspas, sobreposta à fotografia de uma pessoa, é prova cabal de que a primeira saiu da boca da segunda).

Piores ainda são os frankensteins: múmias que ficam muito tempo longe de seus túmulos e passam a ser compostas não só de gaze, mas também de remendos de manchetes sensacionalistas, pedaços de notícias falsas, fragmentos de memes toscos e demais restos de desinformação. Maçarocas ambulantes, os franks têm como principal característica a incoerência. São capazes de levantar a faixa “Somos milhões de cunhas” e ao mesmo tempo gritar “Fora, corruptos”; são capazes de ocupar avenidas para reivindicar mais saúde e educação e, meses depois, apoiar uma lei que congela investimentos nessas áreas por vinte anos; são capazes até de compartilhar oração de São Francisco e – com diferença de segundos – dar like na página do Bolsonaro.

Outra figura assustadora que tem se reproduzido feito gremlin após a meia-noite são os lobisomens. Seres acima de qualquer suspeita e dóceis quando em sua forma humana (sua vó pode ser um deles), transformam-se em animais ferozes quando veem suas convicções – normalmente baseadas no senso comum – questionadas. Basta alguém evocar os direitos humanos de um presidiário vítima de tortura, ou de um assaltante prestes a ser linchado, para a besta uivar “Bandido bom é bandido morto”, “Tá com pena? Leva pra casa!”. Basta alguém defender o debate sobre gênero nas escolas para o bicharoco rugir “Você é viado”, “Quer ensinar as crianças a serem gays”. Basta alguém lembrar a importância de um programa de transferência de renda no combate à pobreza para o lobão grunhir “Não vou pagar imposto pra sustentar vagabundo”.

Um trem-fantasma como esse, claro, não funcionaria sem um bom maquinista. E é aí que surge o vampiro. Intelectualmente superior, ele tira proveito de sua imortalidade para se eternizar no poder. Entra século, sai século, o dentuço continua se alimentando do sangue de suas vítimas, aparentemente enfeitiçadas pelos caninos sorridentes que renascem a cada quatro anos. Convém desfazer dois mitos sobre esse ente do mal: não tem medo de crucifixos – às vezes até os usa para se aproximar de alguns pescoços – nem de luz – prova disso é que muitos exemplares da espécie construíram seus castelos no ensolarado Planalto Central, e lá permanecem desde a inauguração de Brasília.

Eu cá com meus cachimbos e abóboras: quando essa hora do pesadelo vai passar? quando essa aparentemente eterna sexta-feira 13 vai virar sábado? quando essa festa onde só os fantasmas do retrocesso se divertem vai acabar? quando vamos enfim deixar de bancar os curupiras às avessas, que têm os pés virados para frente mas teimam em andar para trás?

“No dia em que as mulas sem cabeça não procriarem mais” – subitamente me sussurra uma voz do aquém do além, adonde que veve os mortos.

domingo, 23 de outubro de 2016

Antes do pôr do sol

Deu vontade de fugir para Lisboa. Voltar à estação Santa Apolônia. Entrar naquele trem rumo ao Porto. Encontrar novamente Amel e Francisco.

Explico: quiseram os deuses do acaso que uma jovem francesa de nome árabe e um rapaz português de nome... português mesmo – que jamais tinham se visto – sentassem nas duas poltronas à minha frente e não se contentassem com um celular ou uma soneca; quiseram ainda aqueles deuses, mancomunados com os do cinema, que eu assistisse a um Linklater em tempo real, ao vivo e na primeiríssima fila.

Para quem não entendeu a referência, estou falando do diretor e roteirista Richard Linklater, famoso pela trilogia do Antesdo amanhecer, do pôr do sol e da meia-noite –, cujos filmes acompanham três dias de paquera e DR, não necessariamente nessa ordem, na vida de Celine (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), que se conhecem também na Europa, também numa viagem sobre trilhos.

O remake com Amel e Francisco não tinha legendas nem tradução simultânea. Então, precisei me virar com meu inglês miojo mesmo, um nível abaixo do macarrônico. Aliás, sorte minha os dois conversarem a maior parte do tempo no idioma dos Beatles; o gajo até arriscava umas frases em francês de vez em quando, mas logo desistia – reconhecia não ter talento para Alain Delon.

Mas talento sobrava ali para horas e horas de papo. Pudera: Amel estudava Cinema, tinha morado uns meses na África e, se minha memória não está hiperidealizando, trazia um Sartre no colo; já Francisco havia se graduado em Física aos dezoito anos, era professor na universidade da capital e, se não estou ficcionalizando demais, mantinha um pôster do Einstein sobre a cama.

Lembro bem dele explicando a ela a formação dos buracos negros num pedacinho de papel. Dela citando o filmaço La vie d’Adèle, depois de ele ter comentado sobre um amigo que escondia ser gay. Dele revelando a alegria que sentia por estar perto de seus alunos. Dela contando que preferia a solidão de quem rabiscava o primeiro roteiro. Dele dizendo que precisava ligar para a mãe e avisar que já estava no trem, antes que bombeiros entrassem pelas janelas para resgatá-lo dos escombros. Dela voltando à formação dos buracos negros ao lamentar a ascensão – mesmo após um século de nazismos e fascismos – de alguém como Donald Trump.

Lembro bem dele (enquanto a ouvia) empurrando os óculos que insistiam em escorregar pelo nariz levemente suado. Lembro bem dela (enquanto o ouvia) acomodando os cabelos sobre o ombro direito. Só não lembro se seus olhares se cruzavam tanto quanto um leitor de Camilo gostaria – mas é certo que marcaram um encontro em algum sobrado esquecido que apenas eles enxergavam.

Ainda hoje interrompo brevemente a respiração para imaginar o que teria acontecido aos dois depois que os perdi de vista no desembarque. Teriam se despedido na estação e nunca mais se falado? Teriam trocado e-mails? Teriam trocado um beijo antes de os créditos subirem? Teriam subido as ladeiras do Porto? Teriam perdido a chance de estrelar um sequel em Paris? Teriam dividido uma garrafa de vinho sob as luzes da Ribeira? Teriam dividido um café da manhã com pastéis de nata?

O que teria acontecido depois do pôr do sol?

Em tempos de diálogo cada vez mais raro, de muito falatório e quase nenhuma audição; de amizades e parentescos desfeitos por causa de uma bandeira política, uma oração a um deus que não o seu, uma preferência estética; de cordões umbilicais conectados apenas aos próprios smart-egos, foi um alívio topar com aqueles dois seres de origens tão diferentes – há um segundo completamente estranhos entre si – que de repente se permitiram uma conversa numa língua que não a deles, sem julgamentos ou cobranças, ainda que talvez esperassem um like (ninguém é só de ferro).

Foi mais que um alívio até: foi uma luz no fim do estúdio.

Por pelo menos umas poucas linhas, uma reles crônica, deixem este cinéfilo acreditar que, apesar do esforço de inúmeros vilões, a humanidade caminha inescapavelmente para um happy end. E que o significado daquele nome árabe – esperança – é um easter egg óbvio do futuro menos surdo que nos aguarda.

domingo, 16 de outubro de 2016

Eta, mundo bom

Quem conta a história é o professor Clóvis de Barros Filho. Tinha levado a família para almoçar fora. Comemorava a aprovação num concurso. Terminada a refeição, ele comentou com o garçom que achara a conta alta. Ouviu em troca: é mais do que eu tiro no mês. Provocado pela revelação, lançou então uma pergunta ao jovem: te parece justo que alguém gaste no almoço mais do que você tira no mês?

O funcionário respondeu que sim. Afinal, quem tinha estudado muito e se preparado tanto merecia ganhar mais do que alguém como ele, que não tinha podido frequentar uma escola. Clóvis não se satisfez: e te parece justo que uns possam frequentar uma escola e outros não? O rapaz devolveu: sim, eu vim do Nordeste para trabalhar, tinha que ajudar meus pais. O mestre insistiu: e te parece justo que alguns tenham que se deslocar de onde nasceram para conseguir trabalho?

Sim. E sim. E mais um sim. E assim foram trezentos te-parece-justos e trezentos sins. Até o sujeito levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus o fato de o patrão dividir com ele e os outros empregados a carne que sobrava (quando sobrava) para que pudessem fazer um churrasquinho ao final do expediente.

Impressiona a resignação.

Como impressiona o sumiço das multidões que, há apenas alguns meses, saíam às ruas com a camisa amarela exigindo mais saúde e educação. Como impressiona o silêncio dos vizinhos que, há apenas alguns meses, iam às janelas bater panelas exigindo o fim da corrupção. Como impressiona – talvez o que mais impressiona – a aparente indiferença (aprovação?) das pessoas em relação ao presente e ao futuro do país.

A aparente cadeia de sins em que a maioria se acorrenta – como aquele garçom – sem oferecer resistência.

Há quem diga que eu ando pessimista demais. Que o momento é de esperança, já que a sociedade, ao afastar “aquele partido” de centenas de prefeituras e não reeleger vereador o filho do “comandante máximo da organização criminosa”, deu mostras de que não tolera mais corrupção e mau uso do dinheiro público.

Será? Não vejo essa intolerância toda (nem consigo ser otimista) quando constato que os dois partidos recordistas de barrados pela Lei da Ficha Limpa saíram ainda mais fortes das urnas. O PMDB – sócio com cadeira cativa na roubalheira nacional desde que meu tataravô batia ponto na porta da Colombo – continua a ser a legenda com mais prefeitos; já o PSDB – que pretende revolucionar a educação brasileira fechando escolas e superfaturando merenda – foi a que mais cresceu.

Há quem diga também que, agora que o impeachment passou e o período eleitoral está terminando, o presidente temerário poderá fazer as reformas de que o país tanto precisa, a começar pela lei que fixa um teto para os gastos públicos. Pasmem: tem gente toda alegrinha porque testemunhou deputados trabalhando em plena segunda-feira, até altas horas, a fim de aprovar a tal PEC 241. Estaria aí a prova de que, pelo bem do Brasil, Congresso e Planalto voltaram a se entender.

Posso lhes contar uma coisa, fofildos? Voltaram a se entender (leia-se: negociar cargos e vantagens) para congelar investimentos em saúde e educação por vinte anos, causando um baita prejuízo aos que mais carecem dos serviços públicos. Querem repassar a conta da crise apenas para a parcela mais vulnerável da população. Enquanto isso, nossos trumps e suas megafortunas – que proporcionalmente sempre foram menos taxados por estas bandas – se safam mais uma vez, protegidos pelos legisladores que eles mesmos ajudaram a eleger com suas doações de campanha.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, amiguitos chegam a corroborar o neopentecostalismo de coalização que paira sobre nossa titubeante democracia ao rogarem a Deus que o pai do Michelzinho conclua, até o fim de seu mandato, a reforma da Previdência e a trabalhista. Dizem que só com a modernização de nossas leis – antigas e tão fascistas quanto um Mussolini, segundo eles – os empresários retomarão a confiança, a economia voltará a crescer e os pais de família recuperarão seus empregos.

Cá entre nós, estou tentando entender não só de onde vem tanta compaixão pelos senhores de engenho, essas vítimas da ditadura do proletariado, como também de que maneira cortar direitos – no lugar de investir em infraestrutura, qualificar a mão de obra e estimular o consumo – vai transformar recessão em retomada.

No caso das reformas, de novo são os mais pobres e a classe média – só eles, amores – os escolhidos para o abate. O que se planeja é um cenário que rivaliza com a mais cruel distopia: homens e mulheres trabalhando até a última idade, CLT “flexibilizada” (com a terceirização das atividades-fim e a prevalência do negociado sobre o legislado) e saúde ainda mais deficiente. Tudo isso justamente quando os estudos demográficos apontam para o envelhecimento dos brasileiros, contexto em que a demanda por médicos, remédios e hospitais só tende a aumentar. É a antecipação do Apocalipse (para usar um termo bíblico, tão caro a uma parcela cada vez maior do eleitorado).

Sério: o olhar encantado diante do engajamento decorativo da primeira-dama ou a expressão apática frente aos jornais pendurados nas bancas alimenta minhas melhores teorias da conspiração; entre elas, a de que uma novela das seis cujo protagonista (Candinho) tinha como lema “Tudo que acontece de ruim na vida da gente é pra meiorá” – e cuja exibição se deu nos meses imediatamente anteriores a essas PECs e picas no povo – não pode ter sido mera coincidência.

É nessas horas que me lembro do romance A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne. Lá pelas tantas, um personagem afirma que “o mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes, enquanto os felizes se confinam em moldes antigos”. A frase completa à perfeição o sentido de um meme que tem circulado nas redes sociais, segundo o qual PEC é a sigla para “Pobres, Enganados e Contentes”.

Não é difícil fazer o link entre esses textos e o conformismo daquele garçom – convencido de que só ele é responsável pela própria condição e de que o perfume da carne assando é sinal de que tudo cheira bem ao seu redor.

domingo, 9 de outubro de 2016

Né brinquedo não

Faltou leite materno na dieta dos nossos ancestrais.

Só isso para explicar tanto marmanjo – e marmanja – crente, crente de que saia justa e decote são convites para o estupro. Só isso para explicar tanta milícia maior de idade incomodadinha com casais gays que trocam bitocas em público. Só isso para explicar tanto tio e tanta vó saudosos de um tempo em que racismo existia apenas na fazenda do Leôncio, e golpe era só o nome feio que se dava à Revolução.

Papais e mamães: o Dia das Crianças está quase aí e é preciso tomar mil cuidados para que os bebezuscos de hoje não se tornem os bolsonarinhos de amanhã.

É por isso que peço aos senhores e às senhoras, en-ca-re-ci-da-men-te, que pensem muito bem nos presentes que vão dar a seus filhotes na próxima quarta-feira. Melhor ainda: pensem nos presentes que vocês têm dado a eles diariamente. Porque a raça humana não merece conviver, daqui a duas ou três décadas, com outra geração que faz de um Trump o seu John Lennon.

Uma primeira dica? Nada de cair na tentação de botar um smartphone nas mãos de seu recém-nascido e correr para o Netflix. O pimpolho mal chegou ao mundo; ele precisa é de carinho, cheiro, cócegas – conexões que nem o mais poderoso wi-fi vai proporcionar. Contato físico, já diziam até os manuais de chocadeira, ajuda a estabelecer e fortalecer vínculos, além de contribuir para o desenvolvimento dos neurônios.

Esses que andam quase tão empoeirados quanto aqueles livros na estante.

Já passou da hora de apresentar a seu rebento a Dona Benta, o Cebolinha, a Miss Marple, o Harry, a Mafalda, o Frodo, a Alice, o Pan. Lembro até hoje de mâmi me apresentando o Zezé – menino que conversava com um pé de laranja lima. Desde então, sei que é possível escutar não só as pessoas, mas também as árvores, os ventos, as chuvas, os travesseiros, as janelas, os abraços, as saudades, os diferentes e as diferenças.

Falando em diferentes e diferenças, que tal aproveitar o feriado e levar o pequeno príncipe e a cinderelinha até aquela praça, aquela praia frequentada por amiguitos que não moram no mesmo condomínio encantado? que não foram à Disney dezesseis vezes? que nunca ouviram falar em aula de jazz e cheesecake de morango? Sair da bolha oxigena os conceitos e asfixia os preconceitos.

Outro ótimo passeio é a boa e velha loja de brinquedos. Mas nem pensar em levantar um muro entre o corredor das bolas e o das bonecas, entre a seção dos carrinhos e a das cozinhas. Ninguém aqui vai querer que a Nanda deixe de virar a nova Marta ou o novo Senna – e o Fabinho, um pai-pra-toda-obra ou o novo Masterchef Brasil – só porque alguém etiquetou os passatempos infantis.

Um dos mais adequados a crianças de zero e cem anos – diz estudo – é a dança das cadeiras. Não aquela em que eu continuava o balé mesmo após a música parar. Mas aquela em que o guri se coloca no lugar da colega excluída pela turma porque é gordinha; do vô que entra no busão e não encontra assento vazio; do garoto que mora na rua e não tem nem uma cama para dormir; da professora que tenta falar, perde a voz e ainda assim não é ouvida pelos alunos. O Ministério da Saúde adverte: olhar com os olhos do outro reduz a incidência de cataratas.

E amamentar as crias com uma dose diária de empatia aumenta as chances de um futuro habitado por adultos de verdade – que não só cultivem o respeito pelo outro (e pela outra) ou ignorem com quem a vizinhança troca saliva, mas, principalmente, sejam sensíveis ao que acontece além do próprio cercadinho.

domingo, 2 de outubro de 2016

Massacres

O sonho de Reginaldo era morrer na sua Maranguape. Pelo menos era o que dizia. Talvez se a fome não fosse um de seus parentes mais desavexados, daqueles que aparecem sempre na hora da refeição, o cabra dissesse que o sonho dele era viver na sua Maranguape. Mas para quem tinha quase nada – morrer já estava bom.

Às vezes, quando o sol ardia de esfumaçar sonho em nuvem, Luiz aventava uma fuga para o sul. Mas o vento logo se tornava brisa. Era só ele se lembrar do conterrâneo mais famoso, o professor Raimundo; mesmo com gravata, diploma e televisão, acabava a aula desfazendo do próprio ordenado: e o salário, ó.

Que chance então tinha um João que mal chegava à segunda letra do sobrenome?

Um dia, porém, a fome apertou demais o nó que ele cultivava na garganta. Ah, se as batatas crescessem como aquele nó! Chico pediu licença ao professor, desligou a tevê, botou a família numa trouxa e rumou na esperança. Avisou ao vizinho que fizesse o mesmo, antes que cercassem o sertão com um muro, e ele não pudesse mais sair de lá.

Não falta doutor por aí achando que uma parede vai impedir a cozinha de achar a sala. Impede nada. Continua todo mundo sob o mesmo teto.

Antônio e os seus não ficaram mais que uma semana enfeando a ponte – o pedaço de concreto mais bem protegido da capital, depois do palácio do governador. Uma fulana indicada por um compadre os apresentou à sua casa nova: um barraco no meio de um matagal onde, anos atrás, funcionara uma fábrica de piscinas de fibra.

Aluguel adiantado.

Adiantando a história também: era madrugada ainda quando a polícia surgiu para desocupar o terreno da antiga fábrica, em cumprimento a um mandado de reintegração de posse. Não sobrou casa em pé, mas sobrou para o Zé, preso por tentativa de homicídio. Com os quatro dentes que lhe restavam, por uma lasca não arrancou o nariz inteiro do soldado que conduzira, coercitivamente, sua mulher até o chão.

A manchete afirmando que um sem-teto (desarmado) tinha praticamente esquartejado um policial (do batalhão de choque) foi meu primeiro contato com o Beto. Sorte minha não ter parado nela. Só assim pude conhecer um pouco a odisseia que levou o homem ao seu dia de chacrete do Datena. E, infelizmente, a um lugar chamado Carandiru.

Dado o título desta semifábula, não é difícil imaginar o resto. O sujeito que tanto sonhou virar pó na cidade natal virou estatística, um dos fins mais indignos para qualquer ser humano. Geraldo não havia sido julgado e, ainda assim, foi condenado a uma pena não prevista na lei. Acabou como um dos cento e onze detentos mortos em meia hora, a maioria com tiros na cabeça e no pescoço, na chacina que, segundo a mais recente decisão da justiça (sic), não existiu.

E, como a ironia não tem limites, quem esmiuçou o noticiário na última semana descobriu que aquele mesmo terreno, o da antiga fábrica de piscinas de fibra, voltou a ser invadido: agora por um senador de cabelos e passado grisalhos, que o incorporou ilegalmente à área de seu shopping center, a fim de ampliar o estacionamento.

Só que, desta vez, não há previsão de uma nova reintegração de posse, nem policiais de prontidão para reestabelecer a ordem. Há apenas uma nota no rodapé do jornal.

P.S.: Hoje é dia de escolher prefeitos e vereadores país afora. Procurem saber quem de fato representa os reginaldos, luízes, joões, chicos, antônios, zés, betos, geraldos; quem de fato representa as marias, claras, anas, gabrielas, vitórias, saras, heloísas, rosas. E, não menos importante, quem representa somente os próprios interesses. Um bom voto a todos vocês.