domingo, 25 de setembro de 2016

A era de

Parafraseando a canção de Taiguara que abre e fecha o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius traz no corpo as marcas de seu tempo.

Hoje a mulher diz não.

Clara (Sonia Braga em modo musa) se recusa a vender para a construtora Bonfim o último apartamento do edifício Aquarius – onde mora há décadas, onde seus filhos cresceram e onde discos e livros e lembranças contrastam com a assepsia das cidades erguidas cada vez menos por pessoas, cada vez mais por criaturas que se formam em business schools e trocam sonhos por metas, a exemplo do jovem Diego (Humberto Carrão, excelente como o tubarão em pele de golfinho).

Certeza de que doeu ali, entre as pernas dele e do avô, escutar a dona do imóvel repetir “Eu não vou vender, seu Geraldo. O senhor já sabe disso”. Duas frases que ela profere sem elevar a voz; com a suavidade quase blasé de quem está “puta mas não estressada”, como revela mais tarde, numa conversa dura com as crias, especialmente com Ana Paula (Maeve Jinkings, amarga sem ser azeda).

Se dependesse da filha, Clara já tinha aceitado a oferta “generosa” da Bonfim e se mudado para um desses condomínios de segurança máxima e alma mínima, os estrangula-céus de nossas metrópoles. Mas quem perdeu o marido e até uma parte do corpo (o seio direito) não aceita novas perdas tão facilmente; ela aprendeu a valorizar cada conquista. Não por acaso conserva os cabelos longos – símbolo óbvio, mas não menos poderoso, de sua vitória sobre o câncer.

Símbolos, aliás, não faltam no álbum de metáforas montado pelo diretor e roteirista pernambucano. Um dos mais emblemáticos – porque rima à perfeição com o apê de Clara, que também guarda mais que objetos pessoais e, por isso, transcende o tal “valor de mercado” – é a cômoda que guarda mais que as camisolas de tia Lúcia (Thaia Perez). Aqui é particularmente interessante o efeito que causa no público a descoberta do que representa aquele simples móvel para uma senhora de setenta anos.

Kleber gosta de provocar. E faz isso em diversos momentos, como na sequência angustiante em que mulheres e homens surgem na praia gargalhando, numa espécie de ginástica do riso, e de repente o treinador que os orienta – contrariando a expectativa gerada pelo preconceito da plateia – convida a participar do exercício os “estranhos” que se aproximam.

Passagens como essa ajudam a retratar o país que a lente crítica do diretor vê. E se espalham nas mais de duas horas de projeção. É a parede do bistrô que ostenta fotos em preto e branco de homens brancos-ricos-velhos, numa alusão aos donos do poder local – e, por que não, nacional, se lembrarmos o ministério machocrata do atual “governo”. É o rapaz de “boa aparência” que vende drogas na orla. É a louça na pia em dia sem Ladjane (Zoraide Coleto, brilhante nas menores falas), numa referência aos direitos recentemente conquistados pelas domésticas. É a manchete do jornal (“Eu gosto de mp3”) que resume a manipulação midiática.

Nenhuma delas se compara, no entanto, à que denuncia uma colônia de insetos infestando certo lugar e comprometendo sua estrutura. A cena põe para formigar a mente do espectador sessão afora. É inevitável relacionar o ninho à oligarquia de parasitas que, ao envenenar o frágil alicerce da democracia brasileira, mostrou ser possível expulsar uma personagem incômoda – de um apartamento ou de um palácio presidencial – sem usar a força bruta. Afinal, como observou Zuenir Ventura em artigo sobre o filme, “há meios mais eficientes que os tratores ou os tanques”.

Por apresentar um forte teor político, explicitar sua visão ideológica e se entregar a um desfecho catártico, há quem acuse Aquarius de dispensar a sutileza e se render a maniqueísmos. É evidente que Kleber recorre a um cinema mais tradicional, no qual heroína e vilão são rapidamente identificados. Mas ele não cria, a partir desses elementos, uma realidade menos verossímil. Longe disso. Na verdade, ultimamente tem sido até fácil encontrar claras dando aulas em nossas universidades e diegos dando entrevistas em programas de economia da Globonews.

O que o cineasta faz é apenas fotografar a velha flor que fura o asfalto – que resiste à fossa e à fome causadas pelo tumor da ganância. Esse que ainda vai acabar nos levando ao fim do mundo.

domingo, 18 de setembro de 2016

Guerra contra a estrela

Muitas coisas chamaram a atenção na coletiva de imprensa de Darth Dallagnol e seus stormtroopers. Uma delas foi a apresentação no PowerPoint, que lembrou aquelas palestras motivacionais inspiradas nas lições dadas a Luke Skywalker pelo mestre Yoda. Difícil acreditar que alguém aumente os níveis de midichlorians ou maneje um sabre de luz com mais tesão ao ouvir “Comandante máximo de sua vida, você é”, “De suas convicções, seu sucesso depende” e por aí vai.

Também causou perplexidade, pelo menos aos simpatizantes da Resistência, a acusação de que o ex-presidente Lula seria o Supremo Líder Snoke, chefe maior da organização criminosa conhecida como Primeira Ordem. A “prova” oferecida pelo Ministério Público Galático para ratificar a denúncia foi a reforma (em tese, feita com dinheiro de propina) de uma cabana triplex na distante lua de Endor, famosa por ser o lar dos ewoks. Detalhe: não há qualquer documento que ateste a ligação do acusado com a referida propriedade.

Ademais, como levar a sério uma narrativa segundo a qual o cabeça de um grupo tão poderoso, mesmo depois de anos saqueando o universo, só tenha auferido uma quitinete num planetinha mequetrefe? Ou ele é um cabeça-oca – ou as viúvas do Império são.

Deixando por ora as metáforas deste humilde padawan das letras, o que mais me incomodou no episódio, porém, foi uma intrigante lacuna: se, de um lado, rotulou-se Lula como o “comandante máximo” da corrupção que reuniu o “consórcio” PT-PMDB-PP – com a justificativa de que, como número-um do governo por oito anos e nome mais importante do Partido dos Trabalhadores, “ele não tinha como não saber” –, de outro, não se fez qualquer menção aos presidentes das duas legendas restantes.

Ué, por onde andava o mundialmente afamado Mr. Fora Temer, presidente do PMDB há mais de uma década? Estaria ele tão dedicado assim aos concursos de miss que não percebeu o quanto seu partido desfilava na passarela da roubalheira? E o atual governador do Rio de Janeiro, Francisco “Calamidade Pública” Dornelles, que entre 2007 e 2013 foi o dirigente-mor do PP e ainda hoje é seu presidente de honra? Em que sarcófago hibernava que não viu seus correligionários evacuando fora da pirâmide?

Para o bem da Lava-Jato e, consequentemente, do país, ou o raciocínio que incrimina Lula – o célebre “domínio do fato” – vale para todos ou não vale para ninguém. Caso contrário, a operação corre o risco de acabar na UTI da História como mais uma vítima da síndrome da seletividade, e de servir tão somente como fonte infinita de memes.

O retorno do jedi: eu adoraria ter convicção de que a Força(-tarefa) está conosco, de que seu despertar está enfim passando o Brasil a limpo; mas a parcialidade das investigações, a fragilidade dos argumentos e a espetacularização das denúncias me parecem provas tão cabais de que testemunhamos apenas uma vingança dos sith contra seus inimigos, que prefiro declinar da ideia de que tal saga “contra a corrupção” represente, de verdade, uma nova esperança para a República.

domingo, 11 de setembro de 2016

Fuso luso

Tenho encontrado o sono às oito da noite e perdido o gajo às seis da manhã. Efeito ainda das férias em Portugal, quatro horas à frente do Brasil.

É a primeira vez que um fuso me pega desse jeito. E olha que já enfrentei piores. Será a idade? A aproximação dos temidos entas? Ou uma sequela deixada pela ingestão simultânea de pastéis de Belém e ovos moles d’Aveiro? Até considerei essas hipóteses, mas logo as descartei ao desembarcar no Galeão e presenciar uma senhora comemorando o impeachment da Dilma com um poeirento “fora, comunista”.

De repente, a diferença entre o cá e o lá do Atlântico não eram mais aquelas quatro horas. Eram quatro... décadas.

Que uma nação que venera Fernando Pessoa – a ponto de estampá-lo em latas de sardinha – é mais adiantada que a Via Láctea e arredores, todo mundo sabe. Ainda assim, jamais imaginei que fôssemos capazes de nos distanciar tanto, e em tão poucos meses, dos nossos irmãos lusos. (“Tanto mar” a nos separar, só na canção homônima do Chico, que saudava a Revolução dos Cravos.)

Mal pus os pés em solo brasileiro e dei de cara com uma passeata cujo slogan era “Diretas já”. Havia ainda cartazes com os dizeres “contra o golpe” e “abaixo a ditadura”. Bateu um medinho de ligar a tevê e ver o Bonner explicando que as pessoas tinham tomado praças e avenidas país afora para comemorar a queda do preço do tomate – daí tantos vestidos de vermelho.

Uma das coisas mais divertidas que fiz na Pessoalândia foi o passeio de elétrico pelas ruas de Lisboa – uma volta ao passado que, no entanto, não lembra nem de longe a viagem em nosso vêeletê do tempo. Custou-me acreditar que o mais recente filme estrelado por Sonia Braga (Aquarius) quase estreou aqui com censura dezoito anos por causa de duas ou três cenas de saliência. Baixou maresia anos setenta total.

Mas boquiaberto mesmo eu fiquei ao ler nos jornais – li ou os meus olhos ainda estariam lacrimejando vinho do Porto? – que velhas raposas de gravata pretendem obrigar o povão a trabalhar mais horas por dia, por mais anos, com menos direitos. As criaturas defendem um mantra segundo o qual “o negociado deve valer sobre o legislado”. Oi? Eu ouvi falar em flexibilização da Lei Áurea?

Dias e noites subindo e descendo a pé as ladeiras do Chiado. Dias e noites subindo e descendo a pé as ladeiras da Ribeira. Uma conexão perdida em Madri. Uma voltinha inteira da Terra ao redor de si mesma, até eu conseguir embarcar no voo de dez horas que enfim me devolveria amarrotado – mas são e salvo – à vila de São Sebastião.

Grande coisa, ó pá. Nem um fim de semana completo na classe econômica se compara ao jet lag provocado pelas turbulências que insistem em tirar a nossa nau da rota da democracia.