domingo, 29 de maio de 2016

Amores perros

Enquanto recebe a visita de um velho amigo, que vem de longe para se despedir, sujeito à beira da morte procura uma nova família para o seu cão.

Uma sinopse dessas e o filme ainda abre a narrativa com uma rua coberta de neve e inverno – a estação que comumente relacionamos ao fim da vida. Mas a iminência do último dia é apenas pretexto para Truman fazer uma viagem ao território da amizade. Logo nas primeiras linhas, o roteiro de Cesc Gay (que também dirige o longa) e Tomàs Aragay toma um avião até um lugar de cores menos frias, a cidade de Madri.

É lá que conhecemos Julián, ator de meia-idade que desiste de médicos e hospitais depois de meses lutando sem sucesso contra uma doença. Interpretado por um artista consciente de que a tela grande ressalta até os menores gestos – o genial Ricardo Darín –, o personagem diz sempre o máximo com o mínimo, como no instante em que se mostra constrangido ao ver o amigo Tomás (Javier Cámara) se referir, na frente de sua prima Paula (Dolores Fonzi), a certo episódio de incontinência urinária.

Cámara e Fonzi têm a mesma consciência do colega de set. É profundamente sugestivo um breve olhar que Tomás lança sobre Paula, quando os dois estão assistindo à peça que Julián estrela, ainda no começo da projeção. É repleta de nuances – tristeza, espanto, admiração – a expressão da moça na cena do aeroporto, nos minutos finais, quando Julián surpreende o irmão camarada com um presente.

Tais sutilezas preenchem com perfeição as entrelinhas deixadas pelos roteiristas. Exemplo disso é a passagem em que Julián encontra Tomás e Paula no saguão do hotel e, ao encará-los, pronuncia apenas um “Faz sentido”. Desnecessário explicar ao espectador atento o que e por que faz sentido, uma vez que ele certamente recolheu as pistas espalhadas até ali e, portanto, compreendeu a atitude dos personagens.

Outro mérito do texto escrito por Gay e Aragay é o equilíbrio entre drama e humor, o que contribui para que a trama jamais lembre um velório e, ao mesmo tempo, situações engraçadas nunca sejam vistas como mero alívio cômico. Nesse sentido, é bem ilustrativa a sequência em Julián e Tomás visitam uma funerária e um atencioso funcionário lhes apresenta os planos oferecidos pela empresa: os mais caros incluem DVD com fotos a serem exibidas durante o funeral, quarteto tocando música clássica e urna de porcelana para guardar as cinzas (no caso de cremação).

Em meio àquele portfólio de absurdos, Julián pergunta se seus restos mortais caberiam num recipiente tão pequeno – e a resposta afirmativa do atendente dá ao sujeito a noção do quão insignificante ele é.

Entremeado por essas e outras epifanias do dia a dia – como a que ocorre após o encontro casual entre o ator e um suposto desafeto num restaurante –, o longa talvez ache sua síntese na conversa em que Julián (às vezes excessivamente espaçoso) revela a Tomás (sempre disposto a entender e realizar os desejos do amigo) o que aprendeu com ele depois de tantos anos de convivência: que não se deve pedir nada em troca àqueles de quem realmente gostamos.

Há ali um laço de companheirismo e fidelidade só comparável ao que existe entre os cachorros e seus donos. Não por acaso, o nome do cão batiza o filme. Faz sentido.

domingo, 22 de maio de 2016

Cultura

Não sei o que é pior: a extinção (temporária) do Ministério da Cultura – algo tão simbolicamente desastroso quanto um ministério formado apenas por homens brancos em pleno século 21 – ou as pessoas defendendo o fim da pasta com a justificativa de que o momento é de crise e, portanto, as prioridades devem ser o emprego, a saúde e a educação.

Como se a cultura – aqui sinônimo de arte – fosse um pudim do qual se pode abrir mão para garantir o feijão com arroz. Visãozinha mais tacanha essa.

Cultura É emprego, minha gente. Deem um google na vida e vão descobrir que, entre 2003 e 2010, nossa produção cinematográfica saltou de seis para 150 filmes por ano. Vão calcular quantos empregos diretos e indiretos foram gerados com esse crescimento. Ou com o boom das peças musicais na última década. Ou com o ressurgimento do carnaval de rua (graças aos inúmeros blocos criados) em cidades como o Rio de Janeiro.

Já passou o tempo em que o foco dos governos era só indústria siderúrgica ou metalúrgica. Nos países mais avançados, a indústria cultural é segmento estratégico, fundamental para o desenvolvimento – inclusive econômico – do Estado. Não fosse assim, os Estados Unidos renunciariam aos dividendos não somente financeiros que lhes rende Hollywood ou mesmo a Broadway.

Mas e os que sofrem nas filas dos hospitais sem atendimento? – pergunta quem critica os artistas que levantaram plaquinhas em Cannes por nunca se manifestarem sobre o caos na saúde (sendo que esse mesmo crítico jamais cobrou os médicos por não tomarem as ruas para reivindicar, por exemplo, cinemas e teatros nas periferias).

Cultura também É saúde, criatura. Não faltam pesquisas listando as vantagens das atividades culturais para o corpo e a mente. Uma recente, na Inglaterra, mostra que pessoas que vão a pelo menos um museu por ano têm uma chance quase 60% maior de afirmar que são saudáveis. Outro estudo revela que participar de aulas de dança regularmente é um ótimo jeito de eliminar quilos extras e prevenir doenças cardiovasculares, o que reduz a demanda por leitos hospitalares.

E de que adianta tanto livro, filme, peça, concerto ou exposição se não há escolas decentes para ensinar o povo a apreciá-los?

Educação não acontece só na sala de aula, filhote. Um cidadão em contato com diversas manifestações artísticas desde os gugudadás já está sendo educado, e certamente chegará ao ensino formal mais bem preparado. Não resta dúvida de que a criança imersa num ambiente culturalmente rico – abraçada por toda forma de poesia ainda no berço – terá muito mais facilidade de absorver e até mesmo questionar os conteúdos que lhe serão apresentados pelos professores.

Outro dia, saiu uma notícia de que células tumorais expostas à “Quinta sinfonia” de Beethoven diminuíram ou morreram. Pois então: abdicar da cultura, sob qualquer pretexto, em qualquer época ou lugar, é como interromper a melodia e deixar a sociedade vulnerável ao mais perigoso tipo de câncer – aquele cujos principais sintomas são a ignorância, o preconceito, o ódio.

E cujas sequelas não podem ser revertidas por medida provisória.

domingo, 15 de maio de 2016

Mal na foto

Sei que uma imagem vale mais que mil palavras. Só que, de vez em quando, é bom a gente colocar uma legenda na dita-cuja para ver se todo mundo entende o que está diante dos olhos.

O retrato de Michel Temer com seus ministros exige uns caracteres.

Que o presidente ilegítimo não foi eleito com os milhões de votos de homens e mulheres, brancos e negros, héteros e homos, jovens e velhos, pobres e ricos – mas com as dezenas de sins de um parlamento essencialmente masculino, branco, hétero, sessentão e financiado por empresários –, não é difícil perceber.

Ainda assim, ele deve ter achado indispensável sublinhar o fato; caso contrário, não montaria um ministério tão macho alvo, não necessariamente alfa. Surpresa nenhuma. Nem as mais polianas criaturas – exceção feita ao senador Cristovam Buarque – esperavam que uma mulher deixasse o recato de seu lar para ocupar a pasta do Trabalho. Ou que um negro preenchesse a vaga do novo ministro da Educação, cujo partido um dia foi ao Supremo contra as cotas raciais.

Da mesma forma, ninguém (com o mínimo de semancol político) imaginava que qualquer integrante de movimento social fosse dividir a foto da posse com um ministro da Justiça acostumado a ordenar, sem mandado judicial, a entrada de policiais militares em escolas ocupadas por alunos que protestam pela merenda.

E pensar que no Canadá – se me permitem um parágrafo vira-lata – os cargos ministeriais são igualmente divididos entre homens e mulheres; além disso, contam com representantes de diferentes etnias, orientações sexuais e crenças religiosas. Mas esse papo de empoderamento e diversidade é conversa fiada dessas republiquetas bolivarianas esquerdopatas gayzistas.

País com pê de progresso se preocupa mesmo é com a inclusão das maiorias – especialmente as suspeitas de corrupção e enriquecimento ilícito. Só isso para explicar o fato de Temer ter escolhido tantos nomes investigados pela Justiça para compor seu governo, alguns dos quais citados no Tribunal da Santa Operação (vulgo Lava-Jato). A propósito: onde foram panelar os cidadãos de bem indignados com a nomeação de certo ex-presidente para a Casa Civil por ser também um investigado?

Boas línguas me contam que eles andam inebriados com a volta da mesóclise aos discursos oficiais, o que não era ouvido no Planalto há pelo menos treze anos. Dizem que tais seres – habituados a medir o caráter de um político pelo uso (ou não) dos plurais – tiveram orgasmos múltiplos ao escutarem aquele pronome átono bem no meio do verbo.

Só não entendo como esse apreço tão genuíno pela última flor do Lácio pode combinar com a extinção do Ministério da Cultura.

Enfim.

Bastidores do pós-foto: Temer recebeu uma bênção do pastor Silas Malafaia. Quem viu a cena afirma que foi uma espécie de excomunhão do Estado laico. Esse momento de tamanha fé e religiosidade dos nossos governantes me fez lembrar a Santa Ceia; não o afresco original, mas um alternativo, nem de longe cristão.

Com os vendilhões do templo no lugar dos apóstolos e Judas no de Jesus.

domingo, 8 de maio de 2016

Mães e filhos

Faz nem um ano que o rompimento da barragem da mineradora Samarco (controlada pela Vale e pela BHP Billiton) despejou milhões de metros cúbicos de lama tóxica no rio Doce: 663 quilômetros de afluentes e córregos foram atingidos; 1.469 hectares de vegetação foram comprometidos; 207 de 251 edificações foram soterradas só no distrito de Bento Rodrigues, em Minas Gerais.

Os números podiam ser do livro do Apocalipse ou de um pergaminho esquecido de Nostradamus – mas são de um site do governo federal.

De acordo com o Ibama, das mais de oitenta espécies de peixes apontadas como nativas antes da tragédia, onze estão ameaçadas de extinção e doze existiam apenas lá. “O nível de impacto foi tão profundo e perverso, ao longo de diversos estratos ecológicos, que é impossível estimar um prazo de retorno da fauna ao local, visando ao reequilíbrio das espécies na bacia”, revela um documento divulgado pelo instituto.

Em suma, a maior catástrofe ambiental da história do Brasil.

Mesmo diante desse cenário distópico (cuidadosamente desenhado pela ganância e negligência de agentes públicos e privados), senadores acabam de aprovar uma proposta de emenda à Constituição que anula a necessidade de licenciamento ambiental para execução de obras no país. A tal PEC estabelece que, havendo um estudo de impacto ambiental apresentado pelo próprio empreendedor – PELO PRÓPRIO EMPREENDEDOR –, nenhuma obra pode ser suspensa ou cancelada.

Deixa de existir assim o processo (feito por órgãos independentes) que analisa se um projeto é viável ou não a partir dos danos socioambientais que ele pode causar.

A mudança, claro, acontece sob o pretexto de estimular investimentos e gerar empregos em tempos de crise – a velha desculpa neoliberal para continuamente pleitear menos regulação do Estado. Segundo os parlamentares que apoiaram a PEC, ela ainda “tem por objetivo garantir a celeridade e a economia de recursos em obras públicas sujeitas ao licenciamento ambiental, ao impossibilitar a suspensão ou cancelamento de sua execução após a concessão da licença”.

Ou seja: em nome da defesa dos recursos financeiros, atacam-se os recursos naturais.

Confesso que nem me dei ao trabalho de investigar quem foram os financiadores das campanhas eleitorais dos senadores que disseram sim a mais esse golpe no meio ambiente. Só desconfio de que não tenham sido ativistas do Greenpeace ou moradores de alguma área alagada pela construção de uma usina hidrelétrica.

Pobre mãe-natureza, que depende dos filhos desta mãe gentil para não virar o canteiro de obras da mãe-joana. Ô, nave-mãe dos ETs, me leva daqui.

domingo, 1 de maio de 2016

Madruga

Parece maldade pedir ao trabalhador que acorde cedo no seu dia, ainda mais quando o feriado cai num domingo. Mas não é maldade – é metáfora. A ideia aqui não é intimá-lo a deixar a cama antes que o sol bata ponto no horizonte. É querer que ele finalmente desperte do sonho que o faz acreditar na riqueza e na prosperidade como destinos inevitáveis de uma vida dedicada às horas extras.

Não tem ajuda divina para quem cedo madruga; o que tem é slogan usado por patrões que desejam a qualquer custo (menos o deles, claro) aumentar a produtividade e o lucro.

Um bom exemplo disso são os Estados Unidos. Não bastasse grande parte dos trabalhadores de lá mal ganhar quinze dólares por hora e jamais ter ouvido falar em décimo terceiro, férias remuneradas, fundo de garantia e afins (que não existem por aquelas bandas), os mui bem pagos CEOs ainda inventam um tal just-in-time-schedulling, última tendência em flexibilização do trabalho: o funcionário liga ou manda uma mensagem para o chefe no comecinho da manhã perguntando se precisará dele naquele dia; caso a resposta seja negativa, o sujeito fica em casa – sem receber.

Pouco importa que o camarada tenha seus gastos inadiáveis com o aluguel do apê ou a hipoteca da casa, com o plano de saúde ou a conta de luz. Pouco importa que não tenha mais um salário certo no fim da semana, do mês, do ano. Pouco importa que não possa programar a própria vida. O que importa é que a empresa tenha se livrado daquela despesa fixa e possa faturar ainda mais.

É ou não a terra das oportunidades... para as corporações?

Corta para o Brasil – que também virou terra das oportunidades depois que uma crise econômica ergueu a ponte ideal para um futuro distópico. Afastada a presidenta que vacila na reforma da Previdência ou na terceirização do mercado de trabalho (e dizimado o governo que reduziu desigualdades seculares ao diminuir significativamente a pobreza extrema e aumentar consideravelmente o salário mínimo), assume o grupo político que, patrocinado pela elite fiespiana, vê no caos a chance de aprovar leis que só a beneficiam – tudo sob o álibi da recuperação da economia.

Duas dessas leis já tramitam no Regresso (vulgo Congresso): a primeira reconhece a contratação de prestadoras de serviços para executarem as chamadas atividades-fim (ou seja, uma clínica que queira lipoaspirar encargos trabalhistas e previdenciários para siliconar sua margem de lucro poderá contar com médicos terceirizados); já a segunda lei permite que acordos coletivos entre patrões e empregados se sobreponham à CLT, ainda que isso signifique perdas para os trabalhadores.

Como o que é ruim pode piorar, a facção prestes a tomar o poder planeja ainda aprofundar o famigerado ajuste fiscal. Sendo seus financiadores os patos que (não) são, é óbvio que esse ajuste vai nadar bem longe da taxação de grandes fortunas, do combate rigoroso à sonegação de impostos e de uma reforma tributária afeita à desconcentração de renda. O mergulho há de ser na parte mais funda do lago, onde boiam os peixes pequenos.

Daí a intenção de – sob o pretexto de flexibilizar o orçamento – acabar com os investimentos obrigatórios, estabelecidos em lei, relativos à saúde e à educação; afinal, quem precisa de hospitais e escolas gratuitos e de qualidade, senão os mais pobres? Daí a proposta de – sob a alegação de reequilibrar as contas públicas – desvincular benefícios da Previdência dos reajustes concedidos ao salário mínimo; assim aposentados, por exemplo, passariam a ter apenas a reposição da inflação.

Medidas amargas mas necessárias – repete diariamente a mídia corporativa, sempre disposta a defender os interesses de seus anunciantes.

É por tudo isso que o cidadão ainda anestesiado pelo ódio a um partido – bela adormecida aparentemente imune a qualquer selinho de esclarecimento – tem de acordar o mais rápido possível desse pesadelo capaz de reunir impeachment e esperança sobre o mesmo colchão. É urgente que ele largue todos os travesseiros estofados de ingenuidade e lute por seus direitos. Antes que o retrocesso e a viagem ao passado sejam tão radicais, que o país volte a se chamar Estados Unidos.

A se julgar o rumo das coisas, até que seria um nome mais adequado.