domingo, 27 de março de 2016

Aos que acreditam em unicórnios

Passei os últimos dias tentando me recuperar do baque. Nunca imaginei que aquela carta escrita à mão, em papel rosa-bebê e cujo envelope exalava Cashmere Bouquet (reproduzida aqui na semana passada) despertaria tamanha nostalgia em tantos leitores. Foi uma baita surpresa constatar a quantidade de donzélicas senhoras saudosas de um país que – deixa eu contar pra vocês – jamais existiu.

Afinal de contas, só numa terra em que unicórnios – u-ni-cór-nios – cavalgassem, ricos e pobres caminhariam juntos pela orla de Ipanema, tomariam juntos chá na Confeitaria Colombo, frequentariam juntos os camarotes do Municipal, viajariam juntos para a serra nas férias escolares; a não ser que o rico em questão fosse uma criança nascida em berço esplêndido e o pobre da vez, sua babá.

Babá que não tinha nem horário fixo: tinha, ao contrário, que se “divertir a valer” (“trabalhar”, em tradução livre de ironia) às vezes até a madrugada, dependendo da insônia do rebento. E ai dela se exigisse horas extras ou adicional noturno por isso. Onde já se viu alguém que era “praticamente da família” reivindicar “regalias” (“direitos”, também em tradução livre de ironia)?

Continuando meu périplo pelo reino dos unicórnios: só nele, ou noutro que não tivesse experimentado séculos de escravidão, brancos e negros viveriam “na mais completa harmonia”. E “mais completa harmonia” não significa apenas dividir a Sapucaí no carnaval; significa também condições minimamente equivalentes de disputar, por exemplo, uma vaga na universidade. Caso seu coração bombeie ao menos um mililitro de empatia por minuto, não será tão difícil perceber que Maria Onete – cinco irmãos menores para cuidar, trabalho na feira ao lado da mãe – e Maria Embranquecida – que nunca precisou olhar o maninho, nem ajudar o pápi na firma (tendo assim todo o tempo do mundo para estudar) – não largaram da mesma posição no grid da vida.

Aí é que entram as cotas – instrumento que, se não é o ideal, reduz distâncias e faz com que a corrida seja mais justa.

Por falar em justiça, tratar os nordestinos com a dita-cuja – e, consequentemente, com a tal dignidade – não é permitir que eles troquem seus lares por periferias quase sempre ignoradas pelo poder público; não é submetê-los a atividades (informais, inclusive) que muitas vezes não garantem aquelas “regalias” já citadas. Não é disfarçar com aparente compaixão o fato de que não se providenciou, na terra deles, um ambiente que suprisse suas necessidades mais básicas, como o acesso à água.

Lembro que aqui a donzélica senhora mencionou indiretamente o surrado slogan “não tem que dar o peixe; tem que ensinar a pescar”, logo após afirmar que “os paulistas não pensavam duas vezes em oferecer trabalho e abrigo” aos imigrantes. Mas como é que se ensina a pescar num lugar em que nem poça é disponibilizada aos moradores?

Quanto ao penúltimo parágrafo da carta, sobre o amor entre petralhas e coxinhas, sobre aulas de história cabuladas, sobre encontros furtivos com um certo Lu, sobre um bosque atrás da escola, sobre braços fortes e companhia, me reservo o direito de não comentar – por obviamente se tratar de assunto de foro íntimo.

Ou por acaso algum leitor terá confundido “impávido colosso” e “gigante pela própria natureza” com chifre de unicórnio?

domingo, 20 de março de 2016

No meu tempo

(Das coisas que só os acontecimentos das últimas semanas são capazes de proporcionar: uma carta escrita à mão, em papel rosa-bebê, de uma leitora octogenária, ao mesmo tempo indignada com as rivalidades que têm tomado conta das ruas e saudosa de uma terra que – a julgar pelo aroma que o envelope exala – devia cheirar a Cashmere Bouquet. Com o intuito de proteger a identidade da donzélica senhora, transcrevo a seguir apenas o miolo da correspondência. Boa divers..., digo, leitura.)

No meu tempo, o país era um só coração. Um só coração que batia nas cores do símbolo augusto da paz: verde, amarelo; verde, amarelo; verde, amarelo. Não havia essa divisão entre ricos e pobres, patrões e domésticas, brancos e negros, paulistas e nordestinos, coxinhas e petralhas. Fla-Flus, só no Maracanã.

No meu tempo, ricos e pobres estavam sempre juntos, fosse caminhando pela orla de Ipanema, fosse tomando um chá na Confeitaria Colombo, fosse frequentando os camarotes do Municipal, fosse viajando para a serra nas férias escolares – me lembro muito bem de como minha babá e eu nos divertíamos a valer, às vezes até a madrugada.

No meu tempo, domésticas eram praticamente da família: podiam até sentar à mesa com papai e mamãe se tivessem acabado de lavar a louça. Por isso, jamais ousariam traí-los entrando na justiça para reivindicar horas extras, adicional noturno, fundo de garantia e outras regalias. Papel assinado? Não precisava; o que valia era o carinho e a confiança.

No meu tempo, brancos e negros viviam na mais completa harmonia. Como não existiam cotas, apenas o mérito era critério para entrar na universidade. Nessas horas me recordo da Maria Onete, pretinha linda que trabalhou lá em casa: sempre sonhou ser enfermeira, mas reconhecia que – por cuidar dos cinco irmãos menores e ajudar a mãe na feira – não tinha se esforçado o suficiente para passar no vestibular.

No meu tempo, nordestinos como a Maria eram tratados com dignidade. Condoídos com a seca que já naquela época os maltratava, os paulistas não pensavam duas vezes em lhes oferecer trabalho e abrigo. Não tinha peixe grátis; tinha que pescar. E assim cearenses, paraibanos, maranhenses e até os baianos (meio indolentes) ajudaram a botar nos trilhos a cidade que é hoje a locomotiva do meu querido Brasil.

No meu tempo, petralhas (ou comunas, subversivos, arruaceiros e outros nomes feios que a boa educação não permite que eu repita) não guardavam ódio contra coxinhas. Saudade daqueles dias em que eu cabulava as aulas de história para encontrar o Lu no bosque atrás da escola. Saudade daquele braço forte. Daquele impávido colosso. Daquele gigante pela própria natureza.

Daqueles anos em que os unicórnios ainda cavalgavam pelos risonhos, lindos campos da pátria – ao som do mar e à luz do céu profundo.

domingo, 13 de março de 2016

Zombie Walk

Não deve ser coincidência a manifestação a favor do impeachment da Dilma e contra a corrupção (do PT) ter sido marcada para hoje: o mesmo dia em que, 39 anos atrás, estreava na Globo o programa dos Trapalhões. De repente vamos reviver uma experiência que resistiu até meados dos anos noventa – a de um humorístico antes do Fantástico; não tão divertido, claro, quanto o de Didi e companhia.

Verdade que a coreografia do hit “Seja patriota” é uma tentativa louvável de provocar riso – mas não chega perto das lutas e quedas ensaiadas do quarteto.

Que os leitores dispostos a vestir a amarelinha nas próximas horas não me interpretem mal: não há aqui intenção alguma de ridicularizar um movimento democrático. É direito do cidadão sair às ruas para protestar a favor ou contra o que ele quiser – mas é que me soa estranho exigir justiça em marcha patrocinada por partido supostamente envolvido em superfaturamento de merenda escolar.

Ou cujo líder máximo foi citado ao menos três vezes por delatores acusados de fraudes financeiras. A propósito: quando é que ele vai pedir música para o Tadeu Schmidt?

Piadas à parte, o que realmente espero é que as micaretas marcadas para este domingo ocorram em paz. Lugar de quem não concorda com troca de presidente fora do tempo das eleições é em casa, vendo o Campeonato Inglês, o The voice kids ou uma maratona de sua série favorita. Vou aproveitar a folga para colocar em dia os episódios de The walking dead. A Zombie Walk, eu deixo para os mortos-vivos.

Sei que a tentação de botar um lenço vermelho e caminhar por aí contra o vento da indignação seletiva é grande (pelo menos para os mais apaixonados). De fato, tem sido difícil manter as estribeiras sob controle, especialmente diante de conduções coercitivas desnecessárias, pedidos de prisão preventiva despropositados e outras ações policialescas que só confirmam a tese de que a morosidade da Justiça brasileira não é para todos. Nem a morosidade.

Mas a hora é de muita calma. Qualquer tapa na orelha, puxão de cabelo ou mesmo peteleco vai ser motivo mais do que suficiente para legitimar um pedido de intervenção das Forças Armadas – intervenção inclusive já sugerida (por certos colunistas do jornal que um dia apoiou um golpe militar) depois que petistas resolveram ir às ruas demonstrar apoio ao ex-presidente Lula.

É bom lembrar que os bolsonaros de plantão não jogam suas manchetes sensacionalistas na fogueira à toa. Aquecem os ânimos de lado a lado à espera de um incidente que lhes dê o álibi para sufocar – sob o pretexto de defender a ordem – quaisquer manifestações que contrariem seus interesses e os de seus mecenas. São como bushes aguardando o onze de setembro que lhes conceda carta branca para invadir iraques e afeganistões.

De volta à minha busca por semelhanças entre este e outros trezes de março da história, descubro que a data não é aniversário só dos Trapalhões; é também do cineasta José Mojica Marins, o popular Zé do Caixão, mais conhecido por suas fitas de terror. Que isso não seja o presságio de uma cravada de unhas em nossa ainda jovem democracia.

domingo, 6 de março de 2016

Oferta e procura

Surpresa nenhuma o mercado ter festejado tanto a ação da Polícia Federal que conduziu coercitiva e pirotecnicamente o ex-presidente Lula a um mero depoimento. O dólar caiu, a bolsa subiu e a alcateia do capital comemorou o pregão bem-sucedido consumindo um tríplex inteiro de champanhe numa praia em Paraty.

Sinais dessa alegria toda dos grandes investidores já tinham sido sentidos com a prisão preventiva do publicitário João Santana (vulgo marqueteiro do PT) e a suposta delação do senador Delcídio do Amaral (que teria acusado Lula e Dilma de interferir nas investigações da operação Lava-Jato).

Tudo muito sintomático.

É imensa a chance de o alinhamento quase mágico desses episódios inflar as manifestações a favor do impeachment da presidenta, e ajudar o tal mercado a se livrar mais cedo de um governo que, embora não cumpra nem de longe (para alívio dos donos do dinheiro) a guinada à esquerda prometida no último pleito, titubeia em pautas como a reforma da Previdência e a flexibilização da legislação trabalhista – medidas que prejudicam os de menor renda, mas que, segundo os lobistas da elite econômica, seriam imprescindíveis para estancar a crise.

Não é difícil imaginar a ansiedade desses lobistas diante da possibilidade do fim prematuro do mandato de uma presidenta cujo partido ainda mantém uma ala dita radical, que (dizem) “sabota” sua governabilidade ao defender uma agenda mais progressista: “populismos” como a taxação de grandes fortunas, a tributação de lucros e dividendos, a defesa e ampliação de programas sociais, o fim das doações de empresas a campanhas eleitorais, entre outros temas repletos de “ideologia” e causadores de ojeriza em qualquer megacorporação que se preze.

Também não é difícil imaginar a ovulação dos gerentes da desigualdade social frente à oportunidade de ver aquele ex-sindicalista (que contribuiu para a saída de milhões de brasileiros da pobreza extrema) simbolicamente morto e enterrado. O simples aceno daqueles quatro dedos a uma nova candidatura à presidência é pesadelo de onze entre dez políticos conservadores – muitos dos quais sócios minoritários e embaixadores majoritários dos faraós da pirâmide social.

Os acionistas do caos, no entanto, não deveriam se angustiar tanto com as projeções em curto e médio prazo. Está a favor deles a disposição – justa, se não fosse seletiva – de certos juízes em investigar e da mídia corporativa em noticiar das pedaladas da Dilma aos pedalinhos do Lula. Mais: está a favor deles o desinteresse cúmplice dessas mesmas esferas em relação a personagens que se comprometem com multinacionais do petróleo a defender mudanças na lei de partilha do pré-sal; ou que se unem a cartéis internacionais para fraudar licitações de trens e metrôs; ou, ainda, que se associam a determinados grupos para salvar milhões em paraísos fiscais a título de honorários por facilitar privatizações.

A procura por um gestor de suas causas sempre mui humanitárias, agora ou em 2018, não há de ser árdua; vide a oferta de candidatos dispostos a representar – sem pudor algum  o sistema financeiro.