domingo, 21 de fevereiro de 2016

Mar aberto

Crail é um vilarejo perdido no litoral leste da Escócia. Foi lá que a apresentadora Mel Fronckowiak conheceu um velho pescador e, ao entrevistá-lo para o programa Destino certo (exibido no canal +Globosat), perguntou-lhe se já tinha pensado em mudar de vida, uma vez que mantinha a mesma rotina havia vinte e tantos anos. A resposta dele: não. Eu tenho meu barco, não preciso de mais nada.

Difícil saber que itinerários aquele capitão e sua modesta nau cumpriram ao longo de duas décadas. Teriam atracado em portos além da imaginação? Içado velas entre o pôr do sol e o nascer da lua? Enfrentado ondas capazes de inundar as nuvens? Cruzado com piratas famosos? Sobrevivido a um desfile de baleias circenses? Ficado simplesmente à deriva catando conchas e estrelas?

Só desejo uma história ímpar ao par em questão. De qualquer modo, um barco é sempre um horizonte.

E todo mundo deveria ter um: barco ou horizonte – dá no mesmo. A possibilidade de se lançar a mares nunca dantes navegados ajudaria muita gente por aí a desencalhar de lugares-comuns, preconceitos, discursos mumificados e de tantos outros redemoinhos que só afogam nossa esperança de ver a humanidade velejando por águas menos turvas.

Remei daquela cidadezinha escocesa até aqui pensando no amigo náufrago que se julga a mais tolerante das criaturas, mas não aceita “o que não é normal”. A homossexualidade é um de seus icebergs. Já lhe joguei várias boias: o ser humano não escolhe a orientação sexual; da mesma forma que não escolhe ser negro, ser alto, ser craque em trigonometria, ser uma lástima com a bola nos pés. Ele nasce de um determinado jeito. É uma condição dele. E o que nos resta é tratá-lo com respeito. Ponto.

Cadê que o marujo agarrou uma boinha?

Ele ainda mergulha fundo na ideia de que “as famílias estão sendo destruídas aos poucos”. Mais boias: de que famílias você está falando? daquelas em que os homens podiam agredir, humilhar, ter amantes e as mulheres tinham que aceitar tudo caladas? daquelas em que o arranjo social era mais importante que o afeto? daquelas em que os filhos “desobedientes” sofriam maus-tratos físicos? daquelas em que conversar sobre qualquer assunto era sobremesa rara nos almoços de domingo? daquelas em que os pais ensinavam o menino a ser “pegador” e a menina a se “preservar” – já que ela podia topar com um rapaz criado igualzinho ao seu rebento?

Infelizmente, o mar está infestado de crusoés: tem o que se queixa de racismo quando é chamado de palmito (mas não lembra em que lavoura seus alvos tataravós trabalharam por livre e espontânea opressão); tem o que combate a criminalidade com o lema bandido-bom-é-bandido-morto (seguido à risca pela polícia brasileira e cuja consequência é a paz que se transpira nas ruas); tem o que repete que não havia corrupção e violência no tempo dos militares (e só vê no dueto censura-tortura uma rima pobre); tem até o que acredita que Hitler era comunista só porque seu partido tinha “socialista” no nome (como se toda moçoila chamada Bela fosse necessariamente uma Gisele Bündchen).

Mesmo com mil guarda-vidas à disposição, esses inquilinos da Lagoa Azul ainda preferem acabar numa ilha deserta, presos a suas âncoras.

Eu sigo no meu humilde barquito e, graças a ele, estou quase aportando no último capítulo do best-seller de Marcia Tiburi: Como conversar com um fascista. Nas piores horas – em que dá vontade de ignorar os gritos de “homem ao mar” e deixar o sujeito ir a pique sozinho –, repito para mim mesmo a passagem na qual somos alertados de que “o diálogo é resistência”, “é prática real de escuta em que a dúvida existe para abrir a si próprio e o outro”, “é aventura no desconhecido”, “é ato político real entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva”.

É às vezes atender a um SOS involuntário de quem ainda não percebeu que está prestes a afundar na própria ignorância.

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