domingo, 26 de abril de 2015

Proibido para menores

Pensando seriamente em mudar de ramo e passar a escrever sacanagem. Calma, calma, sem histeria. Não pretendo inaugurar uma coluna que fale do cotidiano do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa da minha cidade. Tampouco estou anunciando minha contratação pela revista favorita das criaturas com renda superior a dez salários e córtex inferior a dois neurônios.

Pornografia tem limite.

Minha ideia é bem mais soft, quase tão pueril quanto o Multishow após a meia-noite: só quero deitar na mesma cama que E. L. James (a autora dos Cinquenta tons), transar uma ou duas trilogias sadossafadjenhas e dar uma viagrada na minha conta bancária. Quem sabe assim eu não atinja ao menos meio por cento do patrimônio do Christian Grey e possa levar uma vida mais decente.

Decente nível doleiro amigo de empreiteira, fique muito claro.

O que não está claro ainda é o mote da minha saga épico-erótica. O ponto G. Uma Cinderela que, em vez de sofrer nas mãos das irmãs, faz delas – das mãos – seu passatempo favorito? Uma alienígena que domina os principais líderes mundiais na base de rijos sabres de luz? Uma serial lover que, depois de arruinar mil corações, de repente topa com um don juan aparentemente imune ao seu Chanel?

Entre quatro paredes apertadinhas: nessas histórias a protagonista é o de menos – desde que, duas ou três vezes por capítulo, a dita entumeça os mamilos.

Mais vale um título pré-aquecido para (re)acender o forninho dos leitores: Você é fogo, eu sou paixão. Hum. Cafona e brochante. Um bonde chamado luxúria? Demodê. Nesse caso é melhor Um BRT chamado desejo. Gosto de O pecado mora ao lado, em cima e embaixo, mas pode assustar os que preferem literatura papai-e-mamãe. Já Sonetos de infidelidade soa classudo demais, tesudo de menos. Que tal Sonhos tórridos de uma noite de verão? Não: tão apelativo quanto michê, digo, clichê.

Um momento. Parem os vibradores. Acabam de me ocorrer os nomes de guerra perfeitos para os três volumes da pornoepopeia que há de dar uma chave de pernas no mundo: Agarra-me, Joga-me na parede e Chama-me de lagartixa. Pena o Marquês de Sade não estar mais entre nós. Certeza de que ficaria ruborizado – e excitadíssimo – de orgulho só de ouvir títulos tão afrodisíacos.

Pobre Chris: vai virar Sabrina perto do meu kama sutra.

domingo, 19 de abril de 2015

Programa de índio

Não podia deixar passar o dia do índio em branco (trocadilhe se quiser): mas é que eu sou praticamente um caboclinho. Afinal, quando meus pais se conheceram, num carnaval de mil novecentos e clóvis bornay, pápis envergava o figurino de um autêntico aborígene, exceção feita ao generoso bigode e ao par de kichutes.

Além do mais, como ignorar data tão importante, especialmente quando representantes de várias tribos têm feito manifestações contra a proposta de emenda à Constituição que transfere para o Congresso Nacional – território onde estão fincados até a raiz os pés de inúmeros fazendeiros – a prerrogativa de homologação de terras indígenas?

É isso mesmo que você leu: querem dar aos tubarões as chaves dos aquários – pequenas reservas nas quais sobrevivem os nativos que ainda resistem.

Não bastaram séculos aniquilando povos e culturas inteiras em nome de um progresso com muitas aspas. Não bastou roubar suas terras, escravizar seus donos, discriminar seus descendentes. Foi preciso ainda tatuar a palavra holocausto em sua pele: se no tempo do descobrimento havia três, quatro milhões de índios espalhados pelo futuro país do futuro, hoje eles não chegam a novecentos mil. E só pouco mais da metade vive em terras indígenas. Um terço já foi engolido pelas nossas aldeias de concretos.

Aliás: é numa dessas aldeias que reside um gentil apresentador de tevê cuja pele alva não só lhe rende o apelido de palmito, como também horas e horas na terapia para se recuperar de injúria tão racista. Por que me lembrei dele? Porque o moçoilo – defensor intransigente da liberdade de expressão de quem usa mulheres, negros, gays e nordestinos como matéria-prima para piadas de péssimo gosto – agora resolveu defender os índios.

Dos próprios índios e de quem está ao lado deles.

Segundo o sujeito, os progressistas – aqueles que se solidarizam com as causas indígenas – “querem preservar indio na cultura primitiva deles como se fossem animais em zoologico”. “Se o homem ocidental tivesse ‘preservado sua cultura’, estariamos caçando ate hoje”; “alias, caçando pra sobreviver nao por esporte”. [Sic] para todos os vocábulos não acentuados, o probleminha de concordância na primeira citação e a ausência da pontuação necessária na última.

[Sic] maior ainda para as tiradas geniais: quer dizer que primitiva é a cultura que preserva florestas em vez de destruí-las? que exigir que os índios tenham direito a uma ínfima fração da terra que já foi inteirinha deles é querer confiná-los num zoológico? que apinajés, karajás e xerentes vivendo livres em seu habitat são como animais mantidos em cativeiro? que uma aldeia indígena é um zoológico? que caçar para sobreviver é sinal de retrocesso e caçar por esporte, vestígio de evolução?

Parem a canoa que eu quero descer. E escondam o arco e flecha.

Não é à toa que qualquer zapeada no talk-show-de-horrores da criatura invariavelmente confirma a tese de que a expressão usada aqui no título é muitíssimo injusta. Quase tão injusta quanto o tratamento a que têm sido submetidas as diversas nações indígenas desde que os europeus pisaram o solo americano pela primeira vez.

domingo, 12 de abril de 2015

Na falta de um panelaço

Era para o ruído do alumínio, do aço inox, do titânio, do ferro fundido esmaltado ainda estar ecoando pelas varandas de todo o país. Mas não. Nem um sussurro de teflon foi ouvido mesmo diante daquela cena distópica: trabalhadores sendo agredidos do lado de fora do Congresso Nacional – por se manifestarem contra o projeto de lei que amplia a terceirização no mercado de trabalho –, enquanto empresários eram representados lá dentro pelos parlamentares que eles financiaram e elegeram.

Para quem ainda não sabe ou não procurou saber, o tal projeto de lei da terceirização – cujo texto-base foi aprovado pela Câmara dos Deputados na última semana em regime de urgência – legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades-fim numa empresa. Ou seja: uma escola, que hoje já pode terceirizar os funcionários da limpeza e da cantina, poderá, caso a lei seja sancionada, terceirizar até os professores. O que isso significa? Que a escola se livra das responsabilidades trabalhistas relativas a seu empregado e as transfere para uma pessoa jurídica menor – que, como a experiência tem mostrado, nem sempre honra seus compromissos, age corretamente ou mesmo paga os salários em dia (quando paga).

Não por acaso as megacorporações midiáticas – empresas mantidas por outras empresas, os anunciantes – têm apoiado despudoramente esse projeto de lei. Escorada em analistas escolhidos a dedo, a imprensona justifica a “flexibilização das relações de trabalho” (expressão gourmet para “quebra de direitos trabalhistas”) com o mantra capitalista do aumento da competitividade. Recentemente, um editorial do Globo – que um dia já manchetou o quão desastroso seria para o Brasil a criação de um décimo terceiro salário – criticou uma proposta de redução da jornada de trabalho afirmando que a França e outros países europeus, onde a medida foi adotada, “tinham perdido competitividade no ambiente globalizado ao concorrer com países da Ásia, [...] que não tinham restrição legal para o número de horas trabalhadas”.

É ou não é de parar o mundo e pedir um Engov – o jornal de maior circulação do país sugerindo que, em nome da tal “competitividade”, valeria até prescindir da legislação que protege o empregado ao limitar sua carga horária de trabalho? Confesso que, ao me deparar com esse artigo, por pouco não entrei numa cápsula do tempo e voltei ao século dezenove: olha lá os senhores de engenho reclamando que a economia do império será irreparavelmente prejudicada com a abolição da escravatura. Não é à toa que já ouvi gaiato por aí brincando com a possibilidade de o Eduardo Cunha, presidente da Câmara, botar em votação a revogação da Lei Áurea.

Não dá ideia.

Já bastam as manchetes querendo convencer cada cidadão – principalmente o que será mais prejudicado com a terceirização e afins – de que estão ali apenas para informar. Não, não estão. Como certa vez alertou o filósofo e linguista Noam Chomsky, “o propósito da mídia de massa não é informar, mas dar forma à opinião pública de acordo com o interesse do poder corporativo”. E ela (a mídia) faz isso com talento de dar inveja ao ilusionista mais competente que o Mister M jamais desmascarou: terceirizando seu discurso para os chamados “midiotas úteis”, criaturas que, do alto da sagacidade de seus dois neurônios, não só desdenham de temas realmente importantes, como ainda regurgitam a fala de quem faz o que for necessário para alavancar o próprio lucro.

Inclusive esmagá-las cada vez mais.

Entre esses temas importantes, está uma reforma política que combata a crise de representatividade que tem distanciado povo e parlamento; uma reforma que acabe com o financiamento privado para campanhas eleitorais, o que ajudaria a diminuir consideravelmente a sensação (sensação?) de que os políticos chegam às suas respectivas casas legislativas como jogadores que entram em campo uniformizados, das chuteiras aos bumbuns, com os logos de seus patrocinadores.

Outra matéria fundamental é a famigerada regulação da mídia, que para os desantenados é uma tentativa de censura por parte de quem está no poder. Pois não é. Aliás, é justamente o oposto. Regular a mídia é democratizar a informação, é romper com o monopólio das megacorporações (aquelas empresas mantidas por outras empresas etc. etc.) que insistem em contar apenas um lado da história – o que lhes interessa, é claro – e censurar todos os outros. Ou terá sido mera coincidência que os especialistas entrevistados ontem no jornal só enxergassem vantagens na terceirização?

Antes de concluir minhas paneladas, peço licença ao leitor que as aguentou até aqui para voltar ao midiota, ao sujeito de ingênuos predicados que, após mais uma edição daquele mesmo jornal, só consegue repetir o bordão “Fora PT” e similares. Mal sabe ele que o malditupetê – responsável pela corrupção, pela luta de classes, pela violência urbana, pelo racismo, pela intolerância religiosa e por todos os males que passaram a frequentar o país há pouco mais de uma década – votou unanimemente contra a tramitação urgente do projeto de lei da terceirização e, por tabela, contra os empresários; ao contrário da oposição, que, convenientemente blindada pela grande imprensa, foi a favor de mais um golpe contra os trabalhadores.

Não dá para piorar? Dá. Sempre dá. Especialmente quando o fulano do parágrafo aí em cima – ao final da leitura e apesar das incontáveis evidências de que o capitalismo segue são, salvo e selvagem – retruca inconsolável que, do jeito que as coisas vão, logo seremos todos cubanos; que vamos virar uma Venezuela; que caminhamos, enfim, para o comunismo.

Uma frigideira e uma colher de pau, por favor.

domingo, 5 de abril de 2015

Minha casa, minha vida

Pareço saudável, mas estou irrecuperavelmente viciado num programinha do Discovery Home & Health: o Irmãos à obra. Apresentado pelos gêmeos Jonathan (meio empreiteiro, meio decorador) e Drew Scott (um corretor de imóveis), ele mostra os irmãos ajudando terráqueos como você e eu a encontrar sua casa dos sonhos.

Todo episódio começa com a mesma maldadezinha: a dupla leva os participantes da vez, geralmente um casal, para conhecer o paraíso. Uma humilde residência no bairro mais que desejado, com pé direito que arranha o céu, sala tamanho família – família à Mr. Catra, é bom sublinhar –, cozinha gourmet, quatro quartos, closet que é quase um quinto, banheiro com banheira, quintal que é praticamente o Central Park.

E um precinho que só cabe no orçamento do Donald Trump.

Daí a casa cai e levanta aquela poeira de frustração. Nada que os brothers não possam resolver. Não é possível comprar um cafofo pronto para morar? O (bom) negócio, então, é procurar um imóvel mais barato e reformá-lo; pegar aquele muquifo cheio de paredes e transformá-lo num espaço com menos divisórias, mais integração.

É o que Jonathan e Drew chamam de conceito aberto: a cozinha que abraça a sala de estar que abraça a mesa de jantar que abraça a varanda que abraça o jardim...

Fico imaginando como seria saudável – por permitir a entrada de mais luz e oxigênio – levar essa ideia além do nosso endereço e dar uma recauchutada em nós mesmos. Refazer nosso projeto de gente, redesenhar nossa planta baixa. Derrubar os muros entre a intenção e a ação, o virtual e o real, o pensado e o praticado, a saudade e o encontro.

Até entre o salgado e o doce, se não for pedir muito.

Por que não botar abaixo aquele paredão entre o azul-caribe na vitrine da Sonhotur e o mergulho na poupança de cada trocadinho? Entre a bike na garagem e a bike na rua? Entre as hashtags ecologicamente corretas e a coleta seletiva no seu condomínio? Entre o livro por anos e neurônios planejado e a primeira página? Entre a fotografia no porta-retratos e o selfie já, imediatamente, agoríssima, com os amigos?

Custa guardar umas moedinhas na caixa-forte e fingir que esqueceu a senha? Custa (não tanto quanto aquela Dolce Custo que compraste há um ano e não usaste até hoje). Cozinha a batata da perna pedalar na primeira semana? Cozinha, frita e ainda passa na chapa. Dá trabalho separar as cascas de laranja das latinhas de cerveja? Nenhum, se você largar a birita e beber mais água. É difícil achar as palavras certas? Um bocado – mas o garimpo vale ouro. Missão impossível reunir a galera? Não para o Tom Cruise que podemos ser. É só dispensar as desculpas: aqueles dublês que contratamos só para não encararmos os grandes e pequenos precipícios do dia a dia.

Conseguiu enfim juntar a turma toda na casa nova? Então aproveita a ocasião e contrata um bufê japa – quem sabe você não tira mais um tapume da sua vida.