domingo, 28 de dezembro de 2014

Profecias

Não adianta atirar toda a floricultura no mar, pular sete mil ondinhas com o pé direito, mirar o bumbum na direção da lua, tudo ao mesmo tempo à meia-noite, depois de um dia inteiro se entupindo de lentilha, uva e romã. Repito: não adianta. Você pode até estar vestindo a camisa branca da paz, a bermuda amarela da riqueza, a biju esmeralda da esperança, as sandálias azuis da saúde, a calcinha ou cueca vermelha da paixão.

O máximo que vai conseguir é antecipar a fantasia de Carnaval – e arrumar umas câimbras.

Com ou sem simpatia, o ano novo invadirá seu calendário e trará sob as folhas de louro que guardou na carteira (acha que não eu vi?) todas as promessas não cumpridas dos anos velhos: perder peso, economizar dinheiro, plantar uma árvore, entrar na aula de dança, fazer as pazes com o vizinho, aprender uma língua, se apaixonar, se engajar num trabalho voluntário, escrever um livro.

Promessas, aliás, que hão de ficar de novo em sexagésimo segundo plano se minhas previsões estiverem corretas. O que não quer dizer que você vá ser menos feliz por isso.

Os astros me garantiram: aquela conversa séria com a balança vai esperar a segunda-feira pós-churras-de-domingo; a poupança vai sofrer uma revisão de metas para se ajustar àquele finde em Búzios; o flamboyant, ligeiramente maior que seu quarto e sala, vai dar lugar a uma hortinha de temperos na varanda; o curso com Carlinhos de Jesus vai dançar outra vez; as pazes com o vizinho vão acontecer no dia em que ele devolver seu desentupidor de pia (data que nem todo o Sistema Solar junto é capaz de prever).

De resto, seu coração vai ser fisgado. Sério. O dono do anzol? A proprietária da isca? Um espécime nascido em solo francês que logo estará no Brasil prestando serviço num desses greenpeaces da vida. Olha o milagre: de uma só tacada, você vai aprender uma língua nova e se engajar num trabalho voluntário. Tudo para ficar mais perto do seu amor. A história dos dois vai ser tão capa-de-revista que, em vez de acabar na igreja, vai acabar no Fantástico, com direito a entrevista e bênção do Maurício Kubrusly.

O livro? Você há de escrevê-lo meses depois da lua de mel em Paris – contando todos os detalhes deliciosamente sórdidos do seu joyeux nouvel an.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Lobo Mau contra o Natal

O bonde do João Luiz parece não ter freio. Mais conhecido na Vila Operária dos Três Porquinhos como Lobão, o sujeito agora deu de agendar passeata na Paulista toda semana. Dizem as boas línguas que o muso das vovozinhas paulistanas adorou esse negócio de subir no trio elétrico e – num oferecimento da Sociedade Protetora dos Tucanos – discursar sobre ornitologia para quinhentas pessoas. Há milênios um “show” dele não juntava tanta gente.

Mas se engana quem acha que o mais recente rolezinho gourmet sob o Masp – que acontecerá no próximo dia 25 – terá outra vez como tema o fora-Dilma ou o fora-PT. A coisa é muito mais séria dessa vez. De abalar as estruturas do capitalismo selvagem. O motivo da nova manifestação é o impeachment imediato do Papai Noel. Você não leu errado: querem tirar o Bom Velhinho de seu cargo eterno-perpétuo-forever-and-ever.

Os lobistas da bancada da moda defendem o golpe com a justificativa de que enjoaram do vermelho. Os da ala autointitulada mais moderada apelam para o argumento da alternância de poder; reclamam que o Seu Claus manda e desmanda na distribuição mundial de brinquedos desde o tempo em que a criançada se contentava com um pião de madeira sem wi-fi. Já a turma dos direitos humanos, animais e élficos – embasada em relatório da ONG Noite Feliz para Todos – exige o fim do trabalho escravo de renas e duendes.

Os mais extremistas, por sua vez, temem que, não satisfeito com todo o poder que carrega naquele saco, Noel ainda exija do governo uma boa colocação na futura diretoria da Petrobras e assim – com o auxílio de alguns petrodólares – amplie seus programas sociais, como o bem-sucedido Bolsa-Lembrancinha, que tem feito a alegria de milhões de meninos e meninas carentes mundo afora.

“Não tem que sair por aí dando presentes; tem que ensinar a garotada a comprá-los nas lojas mais caras do ramo”, explica o velho Lobo (que não é o Zagallo).

Diante dessa ceia afarturada de sandices, resta àqueles que ainda acreditam no espírito natalino protestar – jinglebelicamente se necessário – contra as atitudes do Seu João Luiz e de sua alcateia clausfóbica. Como? Montando árvore na sala, pendurando meias e pisca-piscas nas janelas, botando guirlanda na porta. Vale também continuar enviando cartinhas, e-mails, torpedos e afins para o Polo Norte. Não é bom deixar que o carteiro deslembre o endereço da Natalândia.

Afinal, não desejamos que Noel e seus fiéis ajudantes sejam esquecidos e acabem como certa Chapeuzinho: na barriga de um lobo faminto de holofotes.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Por uma vida sustentável

Um atraso de cinco minutos e ele (ou ela) já se irrita. Franze a testa, torce o nariz, enche o peito, mexe a cintura, cruza os braços, bate o pé. Faz praticamente uma sessão de lambaeróbica só porque você levou tempo demais calçando os sapatos ou estacionando o carro. Antes fizesse regularmente lamba, funk, sertanejoaeróbica até – qualquer coisa que liberasse a endorfina represada e poupasse o mundo de seus pitis de alto impacto.
                 
Ô, campeão (ou campeã), negócio é o seguinte: não dê tanta importância a faltinha boba, passe lateral, chute sem direção. Nenhum desses lances vai entrar nos melhores (nem nos piores) momentos da partida. Muito menos vão aparecer naquela retrô de fim de ano apresentada pelo Chapelin. Portanto, não desperdice músculos, neurônios e principalmente segundos – seus e dos outros – com bobagices.

Não gaste seu sistema Cantareira com aquele quadrinho que jamais descansará na posição certa; com aquela garoa que cai sempre na hora errada; com aquele arroz à grega que mais parece um panetone de tanta passa; com aquela prova de resistência coronariana que é marcar a consulta no cardiologista; com aquele celular que sofre da síndrome do telefone fixo, e só funciona na tomada; com aquela vizinha que insiste em redecorar a sala diariamente (e, para isso, arrasta sofá, estante...); com aquele tio carente que costuma ligar assim que começa o último capítulo da novela.

Com aquele coleguinha que, de boca fechada, é a estátua do Drummond.

Só consuma seu reservatório – e aí vale chegar ao volume morto – em caso de beijo apaixonado no amor da sua vida; abraço apertado nos pais; faxina no apê para receber a moçada; preparativos para festa de qualquer espécie; campanha para candidato ficha limpa; montagem de árvore de Natal; escolha do presente perfeito para o amigo oculto; sapatinhos de crochê para bebês em geral; fila sob chuva para show do Paul McCartney; curso rápido de francês para conhecer Paris sem guia; peregrinação por TODAS as atrações do Magic Kingdom antes dos fogos de artifício.

Se não for para esgotar corpitcho e mente com atividades desse tipo – que dão prazer a você e/ou aos outros, que tornam este planetinha um lugar ligeiramente mais habitável que os desertos marcianos –, o melhor a fazer, então, é seguir o exemplo das sábias tartarugas de Galápagos: economizar energia e viver duzentos anos.

Talvez seja tempo suficiente para abastecer o coração de sentimentos potáveis.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Cheia de vontades

Assim era a bolsa amarela onde Raquel – personagem do clássico romance de Lygia Bojunga – guardava cada uma delas. Três eram as que mais estufavam seu tecido: a vontade de crescer logo, a de ter nascido garoto e a de escrever. Com o tempo, as duas primeiras emagreceram, voaram feito pipa e a deixaram mais leve. A terceira, por sua vez, continuou imensa; mas, como a menina inventava uma história atrás da outra, não dava chance de o desejo engordar em excesso e pesar demais.

Dessas vontades, a de crescer eu nunca tive. Aliás, sigo não tendo. Os Mickeys que insistem em se multiplicar pela casa não me deixam mentir. Já a vontade de ser (no meu caso) menina talvez tenha ganhado um miligrama quando me disseram que eu, por ser homenzinho, seria obrigado a servir o Exército e comer comida que não a da mamãe. Por sorte, sobrei no alistamento – e a Fernanda respirou aliviada. Quanto à vontade de escrever, essa eu controlo com a dieta de crônicas que meus treze leitores conhecem bem.

Mas se engana quem pensa que minhas vontades param por aí: tem a de chafurdar no sorvete, que só diminui quando aumenta a glicose; a de sair viajando pelo mundo, que só esvazia quando esvazia o bolso junto; a de não fazer a cama quando acordo, em geral menor que a de ver a colcha impecavelmente esticada; a de transferir para a segunda todo feriado que caia no finde (um desejo platônico, admito); a de levar uma vida menos sedentária – vontade superfácil de manter em forma, já que dá e passa no primeiro sofá.

Em suma, carregar a bolsa nossa de todo dia nem megacheia, nem ultravazia é um baita desafio. Às vezes é difícil achar a medida certa. A gente pena até acertar na dose dos quereres e acaba desenvolvendo uma lordose de culpa aqui (por ter cedido a essa ou àquela vontade), uma escoliose de remorso acolá (por não ter). Felizmente, porém, o passar dos anos, a despeito das osteoporoses físicas, nos ensina que – com um dorflex de boa vontade e exercícios regulares de bom humor – a missão é possível.

A coluna agradece.

O problema é que nem sempre as pessoas conseguem atingir esse equilíbrio. Falta-lhes a postura de quem tem vontade – de aprender. Um breve passeio por aeroportos e afins controlados pela Agência Nacional de Metáforas, e o que mais se vê é passageiro na fila da Receita pagando excesso de bagagem. Não, não estou falando daquele povo que chega de Miami com duas dúzias de Azzaros e dez pares do mesmo Nike jurando que é tudo pra uso pessoal.

Falo dos que abarrotam suas bolsas das piores vontades e de lá não as tiram nem sob risco de condenação por tráfico de drogas. Falo dos que enchem a sacola alheia com sua vontade de discriminar quem usa o aparelho excretor para o número três; de disparar intolerância na direção de quem resolveu votar no vermelho e não no azul; de compartilhar ignorância com os que estão à sua volta apenas para ganhar quinze curtidas de fama.

Todos quasímodos de tanto arrastar por aí capangas atochadas de má vontade. Má vontade com a leitura para além das manchetes, má vontade com o estudo para além dos prefácios. Por sinal, leitura e estudo deveriam ser itens indispensáveis a qualquer carteira, valise ou mochila que levássemos mundo afora – fosse ela verde, abóbora ou lilás, com uma ou duzentas divisões internas, com ou sem segredo, made in China ou Chanel. Ambos são imprescindivelmente úteis e não pesam quase nada.

Como o rolinho de Neve que socamos no fundo da bolsa – pra hora em que dá aquela vontade.