domingo, 14 de setembro de 2014

Incêndios

Lá pelas tantas de Esperando Zilanda, romance de Tamara Sender (Annablume, 2010), Estela lembra ao amigo José, com quem fala apenas por e-mail, que ainda existem chamas no mundo; que edifícios – como o da repartição em que ela trabalhava – pegam fogo; que há por aí “labaredas, saídas de emergência, mãos dadas, lances de escada, alarmes e alardes, gritos, fumaça, tudo fora dos padrões comerciais”.

Autodeclarada bomba em caixa de fósforos, Estela/estrela é dessas chamas: faísca num firmamento afogado em cinzas.

Numa época em que não se comover com os discursos do papa, o PIB da Suazilândia e as eleições nas Ilhas Maurício pode soar como pirraça ou indolência, ela foge sem cerimônia da voz do William Bonner. Não quer ouvir o Jornal Nacional. Simplesmente não quer. Prefere jornais velhos e cafés frios.

Enquanto os outdoors do senso comum enaltecem a perseverança, o esforço e a superação – atitudes que para a moça só aumentariam nosso desgaste cognitivo –, ela defende a resignação como ato heroico. A desistência como gesto muito mais humilde. Nobre até. Não por acaso o fato de reconhecer a existência de “histórias magníficas de boicote a si mesmo” a leva a admitir que au-to-fla-ge-la-ção, “palavra de respeitosa divisão silábica”, poderia fazer parte de uma lista de vocábulos felizes.

Falando em lista, a de suas dificuldades para lidar com as coisas ditas mais simples vai longe. Contrariando as bulas de felicidade, Estela considera a gravidez uma invasão de privacidade e o contato diário/compulsório com seres humanos algo extremamente nocivo à saúde. Nada a deprime mais do que contribuir para a perpetuação da espécie. A não ser, talvez, uma praça de alimentação cheia de pessoas trocando presentes de Natal.

Ou a tevê ainda acesa no meio da madrugada. Olimpíadas ao vivo. A atleta com a tão sonhada e suada medalha de ouro no peito. A bandeira verde-amarela tremulando o hino nacional. Os locutores gritando Brasil mil vezes seguidas. Os recordes quebrados. As histórias edificantes. As gagueiras intencionais. Os infartos iminentes. E então Estela se pergunta: o que leva uma pessoa a dedicar a vida ao salto com vara?

Poucas vezes conheci protagonista tão deliciosamente desprovida de paciência para céus, luas, estrelas ou quaisquer grandiosidades e lirismos, o que explica, aliás, o desgosto que sente pelo próprio nome. Raras vezes encontrei narradora tão obstinadamente disposta a desarrumar – com tantas entrelinhas de ironia – o “ambiente de acontecimentos retumbantes” em que vivemos.

Logo, não surpreende que – apesar ou por causa dessa infinita disposição para a desordem – ela use o título de seu diário para sublinhar a rotina de esperar a empregada, aquela que vem toda semana para pôr as coisas no lugar, uma das poucas criaturas capazes de alertá-la para sutilezas da vida como o Vidrex: o Veja específico para limpar vidros e afins.

Surpreende menos ainda que cative o leitor – em especial aquele mais atento aos sinais de fumaça que escapam pelas frestas do noticiário, mais arredio ao mundo das exclamações pré-fabricadas – e o conduza sem alarmes ou alardes pelas páginas do nosso absurdo cotidiano. Onde quase sempre parecem faltar saídas de emergência.

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