domingo, 6 de abril de 2014

Curioso caso

Aconteceu na última sexta. Eu já tinha liberado a turma, apagado o quadro, fechado a mochila e o diário (para quem ainda não sabe, sou professor nas horas de folga), quando uma aluna – treze, catorze anos – me surpreendeu com um tchau até então inédito na minha biografia, de me deixar sem uma sílaba de saliva na boca: “Até segunda, coroa”.

Passados o susto, o espelho e uma breve recontagem dos cabelos brancos – que ainda não chegaram aos três dígitos graças ao infalível tratamento arranque-o-centésimo-toda-semana –, rumei para casa. A pé mesmo, já que não moro longe da escola. Além do mais, naquele dia a caminhada me ajudaria a digerir a palavrita aparentemente fora do lugar, certamente fora do tempo.

Meia hora andando até o meu cafofo, distraído com o vaivém de calçadas e nuvens, eu já estava praticamente recuperado do trauma. Foi aí que aconteceu de novo. Ao parar diante do elevador, a poucos andares de desamarrar os sapatos, uma menininha – três, quatro anos –, acompanhada provavelmente da babá, apontou para mim e gritou sem o menor pudor de garganta: “Olha o garotinho querendo subir”.

Só tive segundo de lhe devolver um sorriso off-white. O elevador surgiu e eu me enfiei nele assustado. Muito assustado. Em coisa de minutos eu tinha ido de T-rex com artrite – aquele professor pré-histórico que insiste que os alunos desliguem os celulares e as “conversas paralelas” para se concentrarem em tempos e modos verbais – a figurante do Xuxa só para baixinhos – aquele guri da novíssima geração que não se cansa de cantarolar que cinco patinhos foram passear.

É interessante o quanto podemos parecer – para quem não nos conhece de perto, para quem só nos vê de longe – (apenas) a múmia de gazes vencidas ou (somente) o smartphone mais moderno de todos os tempos da última semana. Para a aluna, eu cheirava a papiro; para a menininha, a fralda. Mal sabia a primeira, adolescentemente preconceituosa, que o coroa também curtia Face, Twitter e conversa fiada; a segunda, ainda na época das inocências, não tinha ideia do tio ranzinza que o garotinho podia ser.

Certa vez li numa dessas clarices da vida que, dependendo do papel que representamos – professor, mãe, filho, irmã, amigo, esposa, patrão, funcionária, protagonista, coadjuvante, torcedor, poeta, turista – e da plateia que nos assiste, podemos assumir vários personagens no mesmo dia, às vezes na mesma hora, quiçá entre um olhar e outro; podemos ter tantas e todas as idades com as quais até o camaleão mais Johnny Depp jamais sonhou.

Podemos ser o quarentão que vira moleque sempre que bate uma bolinha; o meninote que, mais maduro que os pais, revela que os quer ver felizes, estejam casados ou não; o casal em bodas de prata que volta à adolescência ao ouvir aquela canção do Roupa Nova; os adolescentes que se tornam matusaléns em coma ao passarem as férias inteeeeeiras no sofá, diante de um stupidphone; os vovôs e vovós que rejuvenescem meio século a cada excursão com os amigos.

Pelo sim pelo não, assim que pus os pés descalços em casa, corri para o espelho. Ufa: era eu mesmo ali do outro lado, e não um joelho com nariz de feto. É que por um instante meus neurônios saíram da caixinha e quase me convenceram de que eu sofria os sintomas finais da síndrome de Benjamin Button.

Um comentário:

  1. Tive esse impacto qdo uma mãe falou para a criança: "Olhai ali o moço vendo vc fazer malcriação!". Passei de "colega" para "moço". Ainda não cheguei no estágio "coroa", mas raspar os cabelos ajuda a esconder os brancos. Embora poucos, eles já existem.

    E qr dizer q vc tb é de Língua Portuguesa, xará?!? Legal!

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