domingo, 30 de março de 2014

Marcha a ré

O prédio aqui ao lado acabou de instalar grades na portaria. Segundo a vizinha que mora no 64, é para proteger o condomínio de uma iminente invasão comunista. Como se o Putin estivesse de olho na crimeia dela. Tsc. Agora entendo por que, mesmo tendo dobrado o Cabo da Boa Esperança meia dúzia de vezes, ela continua insistindo na minissaia, no laquê e nos cílios inferiores pintados com delineador.

O que não entendo de jeito nenhum – ainda que me paguem aula de reforço, professor particular e bolsa-autoescola – é o sujeito que, na sanha de economizar cinco patacas de estacionamento, planta seu zero-quilômetro em frente à minha garagem às nove da manhã e só o retira às cinco da tarde. Já avisei aqui em casa: está todo mundo expressamente proibido de sofrer um piripaque do coração (ou entrar em trabalho de parto) em horário comercial.

Falando em piripaque, por pouco não saboreei um no último fim de semana. Estava eu no metrô. Todos os assentos ocupados. Os preferenciais, vejam só, por uma penca de mães mui jovens e seus filhotes de seis ou sete anos. A trilha sonora que jorrava de seus celulares: aquele funk pancadeiro, generosamente compartilhado com todo o vagão. Até aí tudo bem (sic). E a viagem seguiria sem maiores emoções se...

... se uma senhorinha não surgisse no picadeiro. Mas a plateia não se abalou. Ninguém se coçou. Muito menos os palhaços. De pé a velhinha entrou, de pé a velhinha ficou. Só que o tiro de misericórdia – ou seria de AR-15? – ainda estava por vir. Um dos rebentos, o mais irrequieto, ameaçou deixar livre o latifúndio tão duramente conquistado. Pra quê? Foi imediatamente repreendido pela mâmi: se levantar daí, vai perder o lugar.

Sorte da senhorinha que a trupe saltou na estação seguinte e ela pôde enfim descansar sua bengala. Eu, o meu miocárdio.

Mas há pessoas que nem o miocárdio podem descansar. O Renato Aragão, por exemplo. Ou Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, para os íntimos. Recentemente, o eterno Trapalhão foi internado após sofrer um enfarte. A notícia logo se espalhou, assim como a torcida dos fãs por sua recuperação.

Quem viveu a infância nos anos 70 e 80 sabe a importância do sujeito para a tevê e o cinema. E quem não viveu poderia saber; o Youtube está aí e não morde. Aos que não querem saber e parecem ter ódio de quem sabe, deveria restar ao menos o respeito pelo ser humano que passa por um grave problema de saúde.

Só que respeito é javanês para certa classe de criaturas; classe, aliás, que procria mais que a classecê.

Inacreditavelmente, logo se espalharam na rede – principalmente nos espaços dedicados aos comentários dos leitores nos grandes portais, espaços que costumam ser verdadeiros esgotos – boatos de que o humorista maltrataria seus funcionários; acusações de que teria ajudado a reforçar o preconceito contra pobres, pretos e gays; insinuações de que – pasmem à vontade – teria sentido inveja de Chico Anysio a vida inteira.

Nessas horas me dá vontade de fazer como o prédio aqui ao lado e instalar grades. Mas ao redor dos olhos e ouvidos – para protegê-los da iminente invasão bárbara.

domingo, 23 de março de 2014

Guerras frias

E não é que tem uma coisa mais irritante que gente cutucando o celular no cinema? Gente que não consegue usar o tico e o teco ao mesmo tempo. Uns projetos de ameba zarolha que insistem em ver a vida como o eu liriquinho do poema da Cecília: ou isto ou aquilo. Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva. Ninguém ensinou a essas criaturas que um dia com sol e chuva pode render um belo arco-íris?

Para tais seres, aparentemente programados para funcionar em sistema binário, ou você é de direita e em hipótese alguma pode ser visto com camisa vermelha ou estrela no peito, ainda que torça pelo Inter ou o Botafogo; ou é de esquerda e está terminantemente proibido de adotar ou mesmo levar para passear tucanos de qualquer espécie, sob pena de ser denunciado por tráfico de animais (capitalistas) selvagens.

Ou você é americanizado, anda por aí com as orelhas do Pateta e, o-fi-cor-se, não entende nada de geografia, a ponto de arrotar que a capital do Brasil é Buenos Aires e a da Argentina, a Quinta Lua de Júpiter; ou é simpatizante dos russos e não só faz cara de Putin para Big Macs e McFishes, como ainda tem certeza de que todos os sanduíches do Tio Sam são recheados com fígado de minhoca pasteurizada.

Ou você é nerd fanático por filmes de super-heróis versus alienígenas malvados e não sabe o Godard que está perdendo; ou é ratazana de cinema iraniano e o único justiceiro mascarado de que ouviu falar a vida inteira foi o Zorro, aquele sujeito de martelo em punho que nasceu em Krypton, cresceu em Gotham e fica verde-esmeralda toda vez que a Mary Jane está em perigo.

Ou você é hétero, macho, machérrimo e jamais deve ser flagrado na Parada Gay – ou em qualquer festa com mais de duas cores – soltando a franga, o frango, os pintinhos e as plumas ao som do ABBA; ou é assumidaço e está vigorosamente (ui) impedido de bater uma bolinha com a rapaziada no fim de semana, fazer o número-um em pé e guardar a foto do papa na sua Chanel de R$19,99.

Resumo da ópera: para os cérebros (sic) desprovidos do chip da complexidade, ou você é capitalista e explora criancinhas, ou é comunista e come criancinhas.

Eles não conseguem admitir a existência de um camarada vestindo camisa polo no meio da manifestação a favor dos garis; de um entusiasta do sistema de saúde cubano na fila de um espetáculo da Broadway; de um fã do Homem de Ferro comprando ingressos antecipados para o próximo longa do Haneke; de um senhorzinho de cabeça branca e cheio de netos arrasando na coreografia do “YMCA”.

Querem porque querem que acreditemos que somos Beatles ou Rolling Stones, Nike ou Havaianas, novela das nove ou Discovery Channel; que só podemos ser um ou outro, que não podemos estar ao mesmo tempo em dois (ou mais) lugares. Isso quando não ousam dizer – com aquela voz de Galvão Bueno e sabe-se lá com que intenções – que somos um só. Especialmente nessas horas, vale a pena repetir e, se necessário, fazer um desenhinho: não, não somos.

E amamos muito tudo isso.

domingo, 16 de março de 2014

Dias melhores virão

Lá pelas tantas de Elao filmaço de Spike Jonze que levou o Oscar de roteiro original, Theodore (Joaquin Phoenix) conta que às vezes tem a sensação de que já experimentou todos os sentimentos possíveis e nunca mais vai provar algo novo outra vez, a não ser versões “menores” – ou reedições mal-acabadas e desatualizadas, diria Brás Cubas – das emoções que ele sentiu um dia. 

A fala é bonita, poética – como cada fotograma do longa, aliás – e pode sugerir que o passado de Theo foi abarrotado de altas aventuras, daquelas impossíveis de ser superadas até pelo Seu Indiana. Ainda assim, ou por isso mesmo, achei-a extraordinariamente triste, em especial considerando que saíra do coração de um sujeito que aparentemente beirava os quarenta anos e, portanto, talvez não tivesse chegado nem à metade da vida.
 
Confesso que deixei o cinema aliviado – meus eletros ainda não deram sinais tão graves de melancolia.

Não sei se porque minha biografia foi até agora indigna de adaptação cinematográfica ou mesmo de um Globo repórter, e eu ache que o melhor está por vir; não sei se porque meus neurônios, débis e loides demais, continuam acreditando em pasárgadas, wonderlands e afins; não sei se porque meu sistema operacional, guardadas as (in)devidas proporções, funciona meio que à Samantha, o aplicativo por quem Theo se apaixona e cujo desejo de aprender – e amar – só aumenta com o tempo.

O fato é que enxergo – ou quero enxergar, o que é a mesma coisa – uma rua cheia de surpresas a cada esquina. Nem todas serão boas, mas aí a gente lembra o Roberto (“se chorei ou se sorri”) e vida que segue. Sinal verde para ela; para os planos de ainda saborear muitos e todos os anos, meses, dias, minutos, segundos que couberem no meu disco rígido, mesmo sabendo que a pele e outros gadgets não estarão tão rígidos assim quando eu apagar a centésima velinha. 

Ainda tenho que sobrevoar o Vale do Loire num balão; tirolesar sobre um lago em Gales; parar o trânsito da Abbey Road; “esquiar” (pode caprichar nas aspas) em Bariloche; caribear e mediterranear nem que seja na terceira classe; brincar de esconde-esconde num castelo que me assombre em francês ou inglês; renovar meus votos de fé nos extraterrestres em Machu Picchu; visitar a comunidade hobbit na Nova Zelândia.

Isso sem falar nas viagens metaeufóricas: degustar recheios novos de trufa a cada sobremesa; ver todos os filmes quatro e cinco estrelas segundo o Pablo Villaça; reunir familiares e amigos para um flash mob que recrie a cena de um musical (sugestões?); rabiscar a crônica dez mil; dançar com a Fernanda até a última canção nas nossas bodas de adamantium – cem ou duzentos anos de casamento?

O mundo é quase tão grande quanto essa lista. E está repleto de versões maiores que ele mesmo – reedições de luxo ou bolso; bilíngues, trilíngues ou polilíngues; com ou sem ilustrações; pré e posfaciadas; revistas, ampliadas e atualizadas do título ao ponto final. Não queremos que a melancolia vá além de um pezinho de página? Então devemos manter o livro-mundo aberto, folhear seus capítulos, dar um crtl-c-ctrl-v na lição de Samantha: deixar-se perder nos espaços entre as palavras.

Que eles são infinitos enquanto duram.

domingo, 9 de março de 2014

Aos machões

O Dia Internacional da Mulher foi ontem. Mas deveria ter sido anteontem também. E hoje. E amanhã. O dia da mulher deveria ser todo dia. A mulher merece todas as homenagens, todos os elogios, todas as reverências, todos os salamaleques. Todos os comerciais cor-de-rosa que a publicidade for capaz de inventar. Todas as mensagens cafonamente sinceras que você for capaz de compartilhar nas redes sociais. Todas as rosas que aquela ONG de defesa dos direitos dos ornitorrincos ucranianos ameaçados de extinção for capaz de distribuir. Em suma: todas as honras em buquê.

Ainda assim, ainda que as mulheres façam jus a todos os Oscars honorários e humanitários (especialmente os humanitários), não vou escrever sobre elas. Pelo menos não no sentido estrito da palavra, do conceito. A ideia aqui é prestar um tributo, sim – mas aos homens. Especificamente aos mais másculos, aos mais viris: aos verdadeiramente machões.

Aos machões que arrumam a própria cama e cujo QI permite que dobrem até lençol de elástico; aos machões que põem a mesa do café sem entornar o açúcar; aos machões que lavam a louça; aos machões que enxugam a louça; aos machões que passam aspirador e tiram pó; aos machões que manejam uma vassoura com destreza de espadachim; aos machões que esfregam o chão da cozinha e secam a pia do banheiro; aos machões que dedilham os botões da máquina de lavar roupa como se estivessem trocando o canal da tevê; aos machões que sabem a diferença entre sabão e amaciante.

Aos machões que ajudam o filho ou a filha no dever de casa; que vão à reunião de pais; que se esbaldam nos cajuzinhos em festinha de play; que assistem à novela com a companheira (ou companheiro) até quando há um jogão entre o Piracicabense e o Mangaratibano no mesmo horário; que passeiam no shopping com disposição de serem mais que cabides; que choram em comédia romântica; que não perdem uma reprise de A noviça rebelde; que passam uma semana – no mínimo – cantarolando “Do-ré-mi”; que leem a Martha Medeiros todo domingo; que agarram o Mickey toda vez que vão à Disney.

Por fim, minha mais profunda saudação aos machões que escrevem, leem e/ou recitam poesia. Um feliz dia, semana, ano, década, vida inteira internacional da mulher a todos.

P.S.: Os mesmos votos de felicidade e a mesma consideração às mulheres que não só tiram essa lista para dançar, como também valsam solidariamente ao lado do companheiro (ou companheira), enquanto ele (ou ela) acompanha o videoteipe com os melhores momentos de Piracicabense e Mangaratibano. Golaço é o que vocês são.

domingo, 2 de março de 2014

Clube dos cinco

Vejam só o prejuízo que levei com o caos no trânsito carioca: dos nove indicados ao Oscar de melhor filme, só cinco chegaram ao meu tapete vermelho. Certamente os outros ficaram presos em algum engarrafamento entre a finada Perimetral e a Avenida Rio Branco. Paciência. O negócio é fazer a festa com os convidados que conseguiram vencer a gincana do Seu Eduardo Paes.

Gravidade foi o primeiro, ainda no ano passado. A ficção científica dirigida por Alfonso Cuarón é matematicamente precisa – dos efeitos especiais sempre a serviço da narrativa ao roteiro sem delongas, passando por uma Sandra Bullock que vive um náufrago ainda mais náufrago do que o de Tom Hanks, no bom filme de Robert Zemeckis. Porque sem direito a água de coco e terra firme.

Depois veio a ingênua Philomena, pacata senhorinha que estrela o filme homônimo de Stephen Frears. A saga da mulher em busca do filho que lhe foi tirado por freiras malvadas é contada de modo inglesmente contido, balanceia com delicadeza drama e humor, mas não faz o espectador sacudir na cadeira tanto quanto poderia ou deveria, especialmente diante de uma história – real – cheia daqueles detalhes sórdidos da Igreja Católica.

Sacudir, aliás, é o que Trapaça faz com os neurônios. O enredo levemente intrincado cansa um pouquinho, mas nada que impeça a compreensão da história. Destaque para a reconstituição dos anos setenta, os figurinos – que brilham mesmo quando ofuscados pelos decotes de Sydney (Amy Adams) – e a trilha sonora, sedutora coadjuvante que por pouco não contracena com os personagens em determinadas sequências.

Só não é tão sedutora quanto Samantha, por quem se apaixona o agridoce Theodore (Joaquin Phoenix) em Ela, sci-fi retrô de Spike Jonze. Ok que Samantha é apenas a voz de um aplicativo – mas de um aplicativo capaz de evoluir em um único dia muito mais que a maioria dos homo sapiens a vida inteira. Não bastasse ser boa de papo, ela tem as cordas vocais de Scarlett Johansson. Precisa mostrar mais?

Mostrar – principalmente as crueldades sofridas por negros nos Estados Unidos pré-abolicionistas – é o que 12 anos de escravidão não tem o menor pudor de. O diretor Steve McQueen põe o público no tronco ao partir da biografia de Solomon Northup (o possesso Chiwetel Ejiofor) para restaurar as tramas, muitas vezes contraditórias, de uma história cujo maior protagonista é a sobrevivência.

A propósito, de repente me ocorreu que nosso querido prefeito bem que merecia curtir umas férias eternas na fazenda de Edwin Epps, o senhor de escravos vivido por Michael Fassbender. Ou, quem sabe, ganhar uma passagem só de ida para um passeiozinho pela órbita da Terra. Maldade? Pode ser. Mas é que o que o Dudu anda fazendo com os cariocas não tem Philomena que perdoe.