domingo, 12 de janeiro de 2014

La vie en bleu

Filme com efe maiúsculo não é como aquele parceiro que, mal atinge o orgasmo, vira para o lado e dorme. Filme que é filme, dos bons, não deixa você sozinho depois dos créditos, da luz acesa, da volta pra casa. Passa o tempo e ele vai ficando, ficando... Como aquele sentimento que, se não nos devora à primeira vista, aos poucos se alimenta – e nos alimenta – de um olhar, um gesto, um carinho. Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle no original) é desses.

O sujeito desatento sairá do cinema espalhando que assistiu a mais um filme francês: duas pessoas se apaixonam, ficam juntas, têm lá seus teretetês – e falam pelos cotovelos. O “diferencial”? As tais duas pessoas são mulheres e há umas cenas de sexo entre elas. Se o camarada for apegado a rótulos, classificará o longa como romance lésbico. Se estiver mais praquela senhorinha da segunda fileira – cuja pressão sobe com qualquer peitinho de fora –, dirá que a fita só fez sucesso porque apela pra sacanagem.

Chavões que só servem para camuflar preconceitos – contra uma cinematografia, contra uma orientação sexual, contra o próprio ato sexual.

Felizmente, o filme dirigido por Abdellatif Kechiche não só dispensa como arranca todas essas etiquetas. É uma história de amor. Ponto. Ou ponto e vírgula; é também – e talvez principalmente – a história sobre o amadurecimento de uma jovem, Adèle (a belíssima Adèle Exarchopoulos), que, de repente, se descobre apaixonada por outra mulher, Emma (Léa Seydoux).

Destaque para a direção cuidadosa, que acompanha de perto os rostos de atrizes e atores em busca das menores nuances – não esquecendo, contudo, o que ocorre ao redor deles, como na brilhante sequência em que vemos ao fundo, numa tela, momentos de um filme (A caixa de Pandora) sublinhando os pensamentos da protagonista.

O maior acerto de Azul, porém, está no roteiro, que mira a lente no romance e em suas sutilezas. Inspirado nos quadrinhos de Julie Maroh, o script de Ghalia Lacroix e de Kechiche escapa dos atalhos fáceis, que poderiam resultar em melodramices dignas de novela ruim: acertadamente, investe-se pouquíssimo tempo, por exemplo, na provável dificuldade dos pais de Adèle de aceitar o namoro da filha com uma garota; e, ainda, ignora-se o conflito que presumivelmente surgiria na escola em que Adèle dá aulas para uma classe de alfabetização, se descobrissem que ela mantinha relações homossexuais.

Outro aspecto interessante – que apenas reforça a inteligência do roteiro – diz respeito a como é retratado o rapaz que, logo no início do filme, tem um namorico com Adèle: Thomas (Jérémie Laheurte) jamais é visto como um bad boy, um aproveitador de meninas. Ele é um cara legal, parece gostar da colega de escola, e até chora quando ela termina o relacionamento – o que afasta qualquer possibilidade de Adèle “ter virado” gay porque fora maltratada por um homem.

Aliás, Azul tem como um de seus maiores méritos, se não o maior, mostrar que qualquer discussão em torno da sexualidade deste ou daquele indivíduo é – ou deveria ser – irrelevante. Adèle se apaixona por Emma, uma pessoa como qualquer outra (com suas qualidades, defeitos, manias, planos), e não uma criatura que possa ser reduzida a um par de seios ou a um pênis. O que as aproxima – ou eventualmente as separa – são, entre tantas e complexas circunstâncias, suas expectativas e ambições em relação à vida: de um lado, Emma sonha ser uma pintora famosa, reconhecida; de outro, Adèle se vê realizada ensinando crianças a ler e escrever. Aí mora o abismo.

Um abismo, outro, reside na própria protagonista e deságua explícito nas últimas cenas, que espelham as primeiras formando uma rima delicadamente significativa: agora é Adèle quem divide a leitura de um texto com seus alunos, como fazia seu professor de literatura no começo do longa (quando a jovem, ainda aluna, apenas “recebia” a aula); pouco depois, ela deixa uma galeria de arte e vira – aparentemente tranquila, certamente mais madura – a esquina de sua história, o que se contrapõe à sequência inicial do filme, em que sai de casa adolescentemente apressada, descabelada, correndo para não perder o ônibus.

Mais ou menos como acontece com cada um de nós: desde cedo corremos e até nos descabelamos atrás dos ônibus da vida; com o tempo, no entanto, passamos a correr menos, desaceleramos a caminhada – porque de um jeito ou de outro aprendemos, ainda que precariamente, o horário de suas chegadas e partidas.

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