domingo, 24 de novembro de 2013

Everest

E pensar que os Beatles cogitaram ir até o Himalaia tirar fotos para um disco que levaria o nome da mais alta montanha da Terra. Mas os prazos – sempre eles – estavam tão apertados, que os rapazes resolveram simplesmente atravessar a rua em frente ao estúdio que os abrigou por quase dez anos e batizar o álbum de Abbey Road.

Resultado: o que tem de turista engarrafando a capital inglesa para registrar seus pezinhos na mais famosa faixa de pedestres do mundo... É só dar um google para saber por que Paul, John, George e Ringo se tornaram os quatro cavaleiros do Apocalipse de onze entre dez guardas de trânsito londrinos.

Long and winding roads à parte, o caso me fez acender o sinal amarelo. Quantas vezes não provocamos congestionamentos quilométricos em nossas vidas apenas porque encasquetamos que a tal da Dona Felicidade mora numa cobertura de seiscentos metros quadrados na esquina da Quinta Avenida com a Champs-Élysées.

Pode morar. Acho até que mora. Mas esse não é seu único endereço. Senhora de posses, abastada de todos os nossos sonhos mais megassênicos, ela tem casa de campo, de praia, chalé na montanha, apê na Vieira Souto, mansão nos Jardins (da Babilônia), palacete em Marte, castelo nos anéis de Saturno, ilha particular em Alfa Centauro.

Mas tem também conjugado na Tijuca, quarto e sala no Catete, quitinete em Copa. Tem até sobradinho na subida do Vidigal.

Dona Felicidade não guarda cadeira; é nômade por natureza. E, de repente, não está tão longe quanto imaginamos. Quem sabe ela não acorda do nosso lado todos os dias, nas bochechas ainda sonolentas de quem divide (disputa?) o lençol conosco; de quem pincela a Becel no pão de forma enquanto boceja as primeiras notícias da manhã; lê a crônica da Martha como se o domingo não escondesse uma segunda; lava a louça do almoço lembrando a última viagem (e a enxuga planejando a próxima); vai ao cinema ver aquele adorável filme de robôs gigantes por pura solidariedade; faz cafuné e segura nossa mão sempre que o time perde; encerra as discussões com uma trufa no lugar do ponto.

Zapeia o Discovery a semana inteira em busca de (mais) um episódio perdido do Vestido ideal – mesmo jurando já ter encontrado o marido ideal.

Fê – para os íntimos – é a prova final, sem direito a segunda época, de que não precisamos atingir o pico de um monte distante, aparentemente coberto de algodão, para alcançar sua doce companhia. A escalada aqui é outra. Dispensa tantos apetrechos e cilindros de oxigênio. Exige apenas que deixemos a rua livre, o sinal verde e o coração permanentemente aberto ao trânsito de coisas boas.

De preferência, sem aqueles pardais urubuzentos do dia a dia – que insistem em querer nos multar por excesso de alegria.

domingo, 17 de novembro de 2013

Quem quer um aviãozinho?

Pobre do meu queixo: teve de fazer um pouso de emergência há alguns dias e acabou danificando toda a lataria. Felizmente, a queda não comprometeu os circuitos internos e logo, logo ele estará prontinho para novas aterrissagens forçadas – dessas que só este mundo com alma, fuça e madeixas de Galeão Cumbica é capaz de provocar.

O acidente, desta vez, se deu graças a um vídeo divulgado pela companhia aérea Virgin America. Um filmete de cinco minutos que transforma as necessárias instruções de segurança – como a clássica em-caso-de-despressurização-da-cabine-máscaras-cairão-automaticamente... – num número musical digno de um espetáculo da Broadway. Aeromoças e demais tripulantes cantam, dançam, saltam, piruetam, fazem corinho e coreografia até com insuspeitos coletes salva-vidas. Arrasam no rap, arriscam passos de street dance e por pouco não chegam ao moonwalk. Praticamente um remix de Glee com Apertem os cintos... O piloto sumiu!

A justificativa da empresa para o investimento hollywoodiano no clipe – além da óbvia promoção da marca – é impedir que o passageiro, entediado com as orientações de sempre, cochile a ponto de babar nos estofados e acabe não prestando a devida atenção a informações essenciais na hora de correr até as saídas de emergência.

Parem as turbinas da aeronave que eu quero descer. Quer dizer que agora até basiquíssimas instruções de segurança precisam ser apresentadas de maneira “divertidinha” para atrair olhos, ouvidos e neurônios alheios? Que me perdoem os fãs e seguidores do fantástico show da vida: mas hoje tudo – absolutamente tudo – tem de ser entretenimento?

Do jeito que as coisas vão, logo professores só ensinarão orações subordinadas e equações do segundo grau se tiverem tanto talento para stand-up quanto um transgênico de Adnet com Porchat; médicos só passarão suas prescrições se bailarem a Macarena com duas melancias penduradas no estetoscópio; jornalistas só comentarão as taxas de juros se as entremearem com as últimas da novela; juízes só lerão suas sentenças se derem uma palhinha – entre um inciso e outro – do Sinatra que escondem sob a toga.

Já estou até vendo os manuais de geladeira do futuro, todos escritos à moda Agatha Christie, a fim de deixarem o leitor em suspense até a derradeira especificação técnica. Conseguirá Miss Marple solucionar o mistério dos alimentos descongelados? Que fará Hercule Poirot diante do estranho caso da porta que não veda? Serão os dois grandes detetives, em parceria inédita, capazes de decifrar o maior de todos os enigmas: como remover as prateleiras para limpeza?

Imaginem as filas de banco, então. Divididas entre os setores vip e vipão, como naqueles teatros com nome de cartão de crédito. Repletas de garçons atrapalhando a visão do palco ao oferecerem bolinhos de bacalhau a preço de salmão com azeite trufado. Superlotadas de aposentados esperando a vez de receber seus caraminguados – enquanto funcionários os distraem com acrobacias de fazer qualquer Cirque du Soleil parecer aula de ginástica da terceira idade.

Sinceridade? Medo de abrir a caixa preta do mundo e descobrir lá dentro uma gigantesca plateia de colegas de auditório.

domingo, 10 de novembro de 2013

Procura-se um amigo que goste de castelos

Poetas antigos diziam que navegar é preciso, viver não é preciso. Frase bonita, para alguns gloriosa. Mas prefiro minha versão: navegar é preciso porque viver é. Navegar como sinônimo de viajar. Viajar de carro, ônibus ou avião; de livro, filme ou novela; de conversa fiada com os amigos ou papo sério com os filhos – até com o espelho tá valendo. O negócio é sair do lugar, de si, conhecer o outro, ir além do horizonte. É não ficar guardando lugar pra morte. É subir na garupa da vida e só parar pras fotos.

Toda essa volta ao mundo em mais de oitenta palavras é só pretexto pra eu fazer escala no que muita gente já sabe: adoro viajar. Não só sem sair do lugar – o que também acho superbacana etcétera e tal –, mas especialmente saindo dele. Pra trocar uma ideia com a Bri em Búzios, tomar uns goles de sulfurosa no sul de Minas, degustar churrascos e chocolates na Serra Gaúcha, acelerar o buggy e o bronzeamento nas praias do Nordeste, visitar princesas e camundongos em Orlando.

Os destinos podem ser novos ou velhos – todos sempre guardam um quê de primeiríssima vez se soubermos olhar com atenção. No caso dos velhos, o (re)encontro costuma ser ainda mais surpreendente e prazeroso quando estamos na companhia de um marinheiro de primeira viagem. Como é bom ver de perto o rosto de quem, apenas naquele momento, de repente descobre o Corcovado ao descer do bondinho, desvenda Machu Picchu ao abrir a Porta do Sol, devassa a Times Square ao sair do metrô ou desnuda Paris ao atingir o alto da Torre Eiffel.

É quase como recuperar através dos olhos – e, consequentemente, da alma – do outro o flash do instante em que defloramos aquela vista, lá em mil novecentos e lembrança. Saudade que me dá, por exemplo, do segundo em que a Fernanda entrou na Main Street, a rua principal do Magic Kingdom, e se deparou com o famigerado castelo da Cinderela, que antes só existia pra ela nos folhetos turísticos. Senti ali uma espécie de encanto terceirizado, um tipo de gozo por transferência. Sem brincadeira.

(Sintoma típico de um cérebro em constante turbulência, talvez agravada pelos efeitos colaterais do jet lag e do amendoim barato servido no avião. Vai saber.)

Falando em avião, tenho considerado seriamente a possibilidade de decolar pros States no próximo ano e – adivinha – aterrissar novamente na Flórida. Só que, desta vez, pelo menos por enquanto, não há ninguém na trupe capaz de proporcionar ao meu coraçãozito aquele nirvana por delegação. Todos são marujos de segunda ou terceira viagem. Cá entre nós, ainda não me conformei nem um pouquinho com isso. Sigo em busca, portanto, de donzelas de Mickey interessadas.

De moços e moçoilas – não importa a idade – dispostos a desafiar piratas, fantasmas e múmias; a enfrentar aliens, dinossauros e terminators; a encarar bruxos, decepticons e duendes verdes; a planar de asa-delta e foguete; a viajar do Paleolítico à Tomorrowland, do México ao Canadá (com parada obrigatória em Paris e Liverpool); a experimentar as minusculices de uma vida de inseto; a escalar o Everest só pra correr da Criatura das Neves; a estar na chuva – e noutros splashs – pra se molhar; a ter só pensamentos felizes do primeiro zip-a-dee-doo-dah (lá pelas sete e pouco da matina) ao último sininho de fogos de artifício.

A quem se encaixar no perfil, fica o convite.

domingo, 3 de novembro de 2013

Cobrança indevida

Era ainda bem cedo quando tive de ouvir a apresentadora do Bom dia sei-lá-o-quê anunciar, entre os destaques do telejornal, a seguinte reportagem: “O que há com Leonardo DiCaprio? Bonitão e bom ator, nunca se casou e jamais ganhou um Oscar”. Peraí. Eu escutei direito? Quer dizer que atores esbeltos, talentosos, solteiros e esquecidos pela Academia devem procurar tratamento urgente em alguma clínica especializada em... atores esbeltos, talentosos, solteiros e esquecidos pela Academia?
                            
De que mal essas criaturas sofrem afinal? (Onde vivem? Do que se alimentam?) Elas, eu não sei. Nem consigo imaginar. Mas a que tirou do fundo da pauta matéria tão palpitante – digna de Globo repórter com Glória Maria ou de série especial no Fantástico com o doutor Drauzio Varella – só pode sofrer de uma coisa: falta de assunto crônica.

Mania que esse povo tem de ficar enviando fatura pro endereço alheio. Você não pode trocar dois selinhos que já querem saber o recheio dos bem-casados. Não pode pisar no cartório que já querem saber a cor da chupeta do rebento. Não pode receber alta da maternidade que já querem saber o nome do irmãozinho. Não pode botar o guri na creche que já querem saber se você está preparado pra ser avô.

Se for famoso então, coitado. Se tiver a infelicidade de ser um DiCaprio, coitado em dobro. Vai ter que explicar por que prefere cinza se o turquesa é tão mais a sua cara. Vai ter que contar tintim por tintim o que fez a noite toda naquela pizzaria cercado de fatias (muito) suspeitas de marguerita e calabresa. Vai ter que esclarecer o boato de que cortou relações com o Scorsese. Vai ter que dar uma coletiva botando os pingos não só nos is, mas também naquela história de que é o rei do mundo.

Aff. Não bastassem as contas de água, luz e telefone; a internet, a tevê a cabo e o pay-per-view; os planos de saúde e funerário; as taxas contra incêndio, dilúvio, asteroide, ataque terrorista e invasão extraterrestre; a prestação da geladeira; os dez por cento no restaurante e no salão de beleza; a cervejinha do [censurado]... a gente ainda precisa pagar diariamente as promissórias que os desocupados da própria vida insistem em colocar na nossa caixinha de correio?

Deixa eu pensar: não, né? Que nesses casos é aconselhável – e certamente mais saudável – ficar inadimplente.