domingo, 27 de outubro de 2013

Detalhes

Jardim de infância. Eu devia ter uns quatro, cinco anos. Subia e descia o escorrega do parquinho da escola, quando me deu aquela vontade de fazer xixi. Fiquei com vergonha de pedir à tia Cláudia pra ir ao banheiro e acabei molhando o uniforme. Não lembro bem como foi, mas depois confessei (ou confessaram) meu crime a ela e voltei pra casa de shortinho trocado.

Outra: tomei mamadeira até sete, oito primaveras. Juro. Podem anotar aí que o marmanjo aqui, que já sabia ler e escrever – a ponto de ter desbravado sozinhamente as páginas do clássico infantil O pintinho cabeçudo –, saboreava o mingau de mamãe todo santíssimo dia antes de ir pro colégio. E ainda lambia o bico.

Querem mais? A vez em que quase engoli uma moeda. Podia ter sido uma bala Soft, mas não – foi o vil metal. Sinal precoce da minha ganância capitalista de (ainda) pequeno burguês. Não por acaso eu também devorava as revistas do Tio Patinhas e as coxinhas mais poupançudas nas festinhas de aniversário dos amigos.

O pior vocês não sabem: sempre senti uma inveja caímica do meu irmãozinho por ele ter aprendido a andar de bicicleta e eu não; por ele chegar aos chefões de fase do Sonic muito antes de mim; por ter me levado à falência inúmeras vezes jogando Banco Imobiliário; por mostrar mais jeito pra Romário do que eu. Pensa que eu esqueci aquela caneta no play bem na frente dos outros, manito?

Mas meu dark side não para por aí. Fui à Disney duas vezes e, em ambas, me emocionei ao abraçar o Mickey. Chorei vendo Marley e eu no cinema. Fiz a coreografia (completa) de “Ilariê” na minha festa de casamento. Perco a dignidade aos primeiros acordes de “Dancing queen”. Ainda mergulho biscoito no café. Discuto novela como se fosse vida real. Corro de lagartixa feito figurante japonês do Godzilla.

Já votei no Fernando Henrique e no Lula.

Alguém há de perguntar a razão desse arquivo confidencial. O motivo dessa sessão de descarrego. O porquê desse momento meu-passado-me-condena. Só estou me antecipando a quem se arriscar a escrever minha biografia não autorizada. A quem ousar invadir minha privacidade e botar no varal do mundo aquela velha calça desbotada (ou coisa assim).

Não adianta nem tentar.

domingo, 20 de outubro de 2013

Democratices

O mundo anda esquisito demais. E não estou dizendo isso porque de repente passei a comer carne crua. Ninguém tem nada com a cor do meu bife – a não ser, talvez, o meu cardiologista. É que o mundo desandou a dar sinais de esquisitismo mesmo, daqueles perigosamente antidemocráticos, que deixam até a criatura mais blasé com vontade de vestir a fantasia de Che Guevara e revolucionar a América.

A América, então; terra dos livres e dos bravos, a land que vive arrotando liberdade e Coca-Cola – sério mesmo que a Liga da Justiça cismou de caçar um ex-NSA/CIA/FBI/NASA/SHIELD/ETC. só porque ele contou pro Fantástico e o resto do planeta que os States espionam até o e-mail da Dilma Bolada? que o Baraca está mclancheinfeliz só porque grampearam a privacidade da Casa Branca?

Snowden no HD dos outros é refresco.

Pois bem feito pro Obamis: mereceu inclusive o puxão de orelhas que levou da nossa Rainha de Copas na frente dos coleguinhas das Nações Unidas (sic). Aliás, discurso bonito o dela: proparoxítono, eu diria. Defesaça dos direitos humanos e civis. De fazer muito Odorico se suicidar de inveja só pra inaugurar cemitério superfaturado. Pena, porém, que o sermão não tenha se estendido a outros pecadores, daqueles menos cotados para o próximo Nobel da Paz.

Como certos prefeitos e governadores, que insistem em combater pó de giz com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e bombas de efeito imoral. Que se julgam licenciados, alguns até pós-graduados, para dar lições de cinismo e truculência. Que matam as aulas de democracia – e somem com os corpos – porque sabem que vão ser aprovados no fim do mandato, protegidos que são por tropas de elite armadas de bazuca e microfone.

Disse e repito: o mundo anda esquisito demais. Tão esquisito que pensei (juro) em me despedir citando um versinho, quiçá uma estrofe inteira, de um clássico do pagode mela-calcinha, “Essa tal liberdade”, do Só Pra Contrariar, sucesso nos anos noventa. Mas desisti a tempo. Em respeito à soberania intelectual dos meus leitores.

domingo, 13 de outubro de 2013

Uma secretária de passado

Contrariando a (minha) regra básica de todo festival de cinema – a de que a graça não está em ver antes de todo mundo o novo Tarantino, mas em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em catálogo de mostra de diretor iraniano underground –, desta vez não quis embrulhar meus neurônios mais navegantes e resolvi, por isso, atracá-los num porto seguro: o de Liverpool.

É lá que se passa boa parte do doc Nossa querida Freda – a secretária dos Beatles, cuja protagonista é uma quase setentona que, aos de-zes-se-te anos, e depois de frequentar fãzocamente os porões do Cavern Club, tornou-se o mindinho direito de John, Paul, George, Ringo e (Brian) Epstein, o primeiro empresário da banda.

Mindinho porque, apesar de colher autógrafos, dedicatórias, mechas de cabelo, pedaços de camisa e até mimos inusitados (como uma fronha dormida por Ringo) de seus patrões a fim de enviá-los (os mimos, claro) às membras do fã-clube – e de estar sempre tão perto deles a ponto de a imprensa, em dado momento, cogitar um casamento entre ela e Paul –, Freda procurou ser a garota mais nowhere possível, e em nenhum instante pareceu tirar proveito da situação para se promover ou ganhar uns trocados com souvenirs, furos ou biografias não autorizadas.

Tanto é que ainda hoje malha os dedos de secretária nos teclados da vida e raramente comenta com familiares e amigos os anos imersos no submarino amarelo. Ela mesma diz que só decidiu falar para a câmera do cineasta Ryan White quando se deu conta de que logo o neto recém-nascido encontraria a avó sentada numa cadeira, gato a tiracolo, e não imaginaria o que ela tinha feito na juventude.

Uma de suas responsabilidades (ou privilégios) era receber as centenas de cartas que chegavam toda semana à sua casa, ingenuamente transformada por ela em sede postal do fã-clube, que passou a presidir. Seu pai, coitado, nadíssima feliz com o trabalho da filha, é que se revirava para achar – entre milhares de love, love, love – as contas de água, luz e gás.

De certa forma, Freda era como essas contas: um resquício de vida-como-ela-é, um vestígio de sobriedade e comedimento, em meio a tanta histeria. Quase inacreditavelmente, a menina adolescente adulta – que, segundo a própria, amadureceu rapidamente naqueles anos – conseguiu manter os pés fincados no meio-fio da realidade, ainda que diariamente atravessasse abbey roads e penny lanes.

A certa altura do filme, ao ser indagada sobre um possível affair com um dos rapazes, ela pede entre sorrisos para pular a questã. Não se poderia esperar outra reação – à Monalisa – de quem foi tão íntima do mítico quarteto e, mesmo assim, encarava o emprego dos sonhos de qualquer beatlemaníaco como um emprego, sem aparentemente se deixar entorpecer pelo céu de diamantes que pairava sobre sua cabeça.

A você, admirador do Fab Four: se tiver a chance de ver e ouvir essa simpática história de bastidores – deliciosamente emoldurada por canções que vão da sessentíssima “I saw her standing there” à discretamente fofa (como Freda!) “I will” –, não pense meia vez. Garanta já seu ticket to ride.

domingo, 6 de outubro de 2013

Das merkwürdige Kätzchen

Eu podia ter ficado em casa vendo a Sessão da tarde e zapeando aquela pipoquinha de micro-ondas nos intervalos. Esticadão no sofá. Mas não: resolvi encarar o dia nublado, com mais de oitenta por cento de chance de chuva e canivete, para ver um filme do Festival do Rio. Unzinho pelo menos.

Não o novo do Woody Allen, do François Ozon ou do maior cineasta iraniano de todos os tempos da última mostra em Cannes, que esses têm telona cativa nas melhores salas do ramo. A graça dos festivais, ao contrário, está em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em teaser de retrospectiva do cinema finlandês.
 
O escolhido da vez foi um alemão de 72 minutos cujo título original, impronunciável, encobria um singelo A gatinha esquisita. Não, não era uma cinebiografia da Angela Merkel, nem um documentário sobre códigos secretos usados por nazistas durante a Segunda Guerra. Era tão somente, segundo a sinopse, “uma espirituosa fábula sobre os encantos que a rotina pode reservar”.

E mais não sei.

Pois não assisti nem a cinco minutos do chucrute. Motivo: falta de legendas. Depois de sobreviver ao perfumadíssimo saguão do velho Espaçunibanco, quase tão salubre quanto a Câmara de Vereadores da cidade, eu e mais dezenas de cinéfilos – além dos organizadores do festival – descobrimos que a película não tinha sequer um miado traduzido.

Resultado: baixou o black bloc na plateia. Uma facção passou a exigir desesperadamente a interrupção da sessão. Olelê, olalá, se o filme não parar, o Terceiro Reich vai bombar. Outra turma – as senhoras de laquê – preferiu reivindicar um loiro alto, espadaúdo, que fizesse dublagem simultânea.

Um senhorzinho com jeito de tuberculoso e meio surdo – tossia que nem poeta romântico e reagia a tudo com delay – decidiu se manifestar, aos berros, a favor da devolução do dinheiro. Só que: cerca de meio minuto após avisarem que o longa seria exibido mesmo sem legendas e os que desejassem poderiam reaver o valor do ingresso na bilheteria.

Vaia no vovô, coitado. (Felizmente, a cena foi menos trágica que cômica, graças às risadas, em maior metragem que os apupos.) 

Eu acabei seguindo a massa – mais discreta, conservadora , que preferiu não gastar o alemão na frente de estranhos, ainda que com a luz apagada. Se fiquei frustrado? Nem tanto. Afinal, não é todo dia que a gente entra no cinema às escuras (duplo sentido, por favor) e sai dele com a crônica semanal garantida e o seu dinheiro de volta.