domingo, 25 de agosto de 2013

Levantar âncora

O sujeito traçando o pê-efe no balcão do boteco, as crianças atravessando a rua fora da faixa, a dona examinando as laranjas no hortifrúti e, de repente, dou eu de novo com aquela senhorinha tomando sol no banco da praça, inclinada sobre as páginas de outro tijolaço (não mais do Kafka ou do Bandeira, agora da Jane Austen) e desavisada do resto do mundo – daquele mundo.

Me veio na hora: fortalecendo os ossos e a cabeça, não é, madame?

Quase sempre é chato à beça ficar tirando lição de tudo que se vê, mas a cena era metonímica demais pra deixar passar: a representação perfeita de quem atravessou décadas sem perder a capacidade – e o desejo – de continuar vitaminando corpo e mente, de quem não permitiu que uma âncora a prendesse num porto aborrecidamente seguro.

Oxalá as pessoas copiassem o exemplo daquela velhinha, especialmente as que, ainda jovens, insistem em pendurar um ferregulho no pescoço do próprio barco.

As que seguem sempre o mesmo caminho até o trabalho; as que engolem sempre o mesmo filé com fritas; as que borrifam sempre o mesmo perfume de rosas; as que veem sempre os mesmos filmes de ação; as que escutam sempre a mesma banda de rock; as que assistem sempre ao mesmo canal; as que pegam sempre a mesma praia nas férias; as que sempre.

As que nunca içam velas em busca de um horizonte que as surpreenda.

E acabam não descobrindo a lojinha de fantasias na rua paralela à do trabalho; o sabor delicadamente adocicado do molho teriyaki; o aroma exótico da flor das sete cores; a elegância surreal daquele Woody Allen às margens do Sena; os versos de poeira e carvão de um forró do Seu Luiz; o programaço de entrevistas no finzinho do controle-remoto; o chalé bem no alto da montanha.

O mar aberto à sua frente – inundado de possibilidades oceânicas.

Aos navegantes, um aviso daquela senhorinha (de quem me tornei amigo após dois ou três olás, e fã número um depois que me mostrou as fotos de sua última viagem à Disney): jamais permita que seu casco encalhe numa ilha distante e fique lá o resto da vida. Você corre o risco de perder contato com novas correntes, de se acostumar com uma paisagem só, de se deixar molhar pelas mesmas ondas – de virar um náufrago por acomodação.

Não deve ser por acaso que sua próxima aventura – ela me contou toda animada  seja um cruzeiro. Daqueles com sistema all inclusive. Faz sentido.

domingo, 18 de agosto de 2013

Nada de novo no front

Já arrumei a cama, tomei o café, passei os olhos no jornal, lavei a louça, e neca da ideia genial que vai mudar minha vida. Até lembrei do Centrum: nada. Ainda dei um tempo no banheiro, escovei os dentes, cortei as unhas, fiz a barba, liguei o chuveiro, mas não me escorreu uma gota de epifania.

Quem sabe ela não saísse da boca da Ana Maria. Ou, mais provável até, do bico do Louro José. Liguei a tevê, e só o que consegui foi salivar um bolo de nozes, recheio trufado, cobertura de chocolate e morangos. De chamar os cachorros, os gatos, até as iguanas do vizinho, mas de mudar no máximo o status no Face.

Convenhamos: pouco.

Iniciei o Windows, conectei o Chrome, acessei o Gmail. Quem sabe a luz não entrasse pela caixa de mensagens. Estaria ela escondida na “queima de estoque” do Ponto Frio? Camuflada na “oferta imperdível” da Farma Online? Oculta nas “últimas novidades” do Fuxico? Haveria um insight bom o suficiente numa promoção de torradeiras? Numa liquidação de absorventes? Numa black friday de fofocas baratas?

Excluir.

Dez e cacetada da manhã, o sol já chegando à janela da sala, e nem sinal de milagre – nem olá da ideia genial, nem aceno da proposta milionária capaz de rejuntar o esqueleto, enrijecer a moral e beliscar os olhos pra ver se caio de mim. Vou continuar sonhando: é o melhor que faço quando não estou velando as bochechas da Fernanda.

Pelo visto, vai ser mais um dia como os outros, passados e futuros, quase todos presentes que embrulham de sono antes do fim da novela e desembrulham de susto assim que o rádio-relógio acorda aquele good times de mil novecentos e pedro de lara. Faça chuva, faça céu, vai dar em nada.

Há de seguir pingando às pressas e transbordando aos poucos – até esvaziar suas horas.

domingo, 11 de agosto de 2013

Amarildos

Dias melhores aqueles em que o meme do momento era a Luiza, que todos sabiam estar – muito bem, aliás – no Canadá. Hoje, infelizmente, o hit é outro, cadê o Amarildo, sujeito que a câmera da UPP (oh!) não viu e o GPS da polícia (oh!) não rastreou; pedreiro que, ironicamente, virou pedra no sapato das otoridades.

Pena que esse Amarildo, especialmente para sua família, não deva mais aparecer, a não ser o frio, triste e (não) tão repentino corpo, que a qualquer minuto há de surgir por aí – na voz aveludada de um samurai do horário nobre ou no celular pré-pago de um ninja de última hora – descansando sob a bênção de urubus tripulados.

Mas ainda há outros tantos Amarildos que podem e devem ser encontrados, que podem e devem ser resgatados da cela em que foram esquecidos – quando não abandonados –, graças à cegueira seletiva, ao silêncio conveniente, à negligência fácil, à cumplicidade cínica de cada um de nós.

O Amarildo que sumiu no banco da escola, chegando ao fim da adolescência mal sabendo ler e escrever; o Amarildo que sumiu na fila do hospital aguardando senha, e ainda voltou para casa sem número e atendimento; o Amarildo que sumiu no vagão do trem ou metrô superlotado e virou sardinha nas estatísticas; o Amarildo que sumiu na poeira do sertão à espera de milagre ou água encanada para irrigar sua lavoura; o Amarildo que sumiu sob o viaduto enquanto era tragado pelo crack; o Amarildo que sumiu na calçada, na esquina, no sinal quando nos desviamos dele ou fechamos o vidro do carro; os Amarildos que...

... continuam sumindo diariamente, escorrendo pelos ralos da indiferença – sob nossos narizes de silicone, anestesiados de tanto botox midiático – até virarem apenas números nos ibopes e nas eleições, quando recebem um indulto para escolher o próximo carcereiro e festejar a democracia.

Estão todos aí, perambulando de cova em cova feito walking deads, como que cemitérios ambulantes de restos mortais, mausoléus destituídos de passado e futuro, cadáveres cujo perfume muitas vezes não sentimos porque nosso olfato só sai de casa de helicóptero.

Verdade seja dita: não é difícil encontrá-los. Basta ligarmos a câmera e o GPS do smartphone que carregamos – diz o clichê – do lado esquerdo do peito.

domingo, 4 de agosto de 2013

Aqui me tens de regresso

E cá estou eu tentando rabiscar qualquer coisa que valha meio leitor. Mas tá difícil. Muito. Meu nariz anda quase tão congestionado quanto a Rio Branco na hora do rush em dia de manifestação. Quer dizer, não anda. Aqueles dois buraquinhos só não estão mais entupidos por falta de espaço (e quem me conhece, especialmente de perfil, sabe que o que não falta por estas bandas é espaço).

Portanto, me desculpe se o texto de hoje não ficar lá essas coisas. É que acabei de voltar de umas miniférias em Maceió e estou naquela fase de readaptação às condições normais de temperatura e depressão. Isso mesmo, você não leu errado: depressão. Com dê de desânimo, de desespero. E um quê de – que é que eu tô fazendo aqui?

Não por acaso, já na véspera do check-out – do último adeus a todas as mordomias hoteleiras, do café ao serviço de quarto –, minha garganta começou a me trair. E não demorou uma noite pra juntar as amígdalas com a primeira febrete de 38 graus que lhe cruzou o caminho. Safadjenha.

Até aí nenhuma novidade. Todo fim de viagem é assim. Esteja eu voltando de Cabo Frio ou dos Estados Unidos da Cochinchina, os sintomas são os mesmos. Deve ser uma reação do corpo aos primeiros sinais de realidade aterrissando no meu Galeão interior, como a conta de luz, a fila do supermercado, a louça na pia e, claro, o despertador no criado-mudo – entre outras turbulências capazes de perturbar o voo de qualquer um.

Cá entre nós: depois de passar uns dias brincando de primeira classe – livre daqueles (fusos) horários que deixam até o estômago mais saudável com sensação de jet lag –, não é nada fácil voltar à rotina da classe econômica, em que se desperdiça tempo com afazeres que não passeios de buggy à beira-mar, visitas a feirinhas de artesanato ou jantares regados a camarão e água de coco.

A carcaça sente.

E exige um período de quarentena até se recuperar da súbita abstinência da vida em estado bruto, quase virgem, praticamente intocada pelos empecilhos do dia a dia; da vida com pé na areia e velas içadas; da vida que brisa no vaivém das redes, no forrozim das ondas, sem ponteiros tiquetaqueando zilhões de tarefas nubladas, sem calendários marcando cinco segundas-feiras por semana.

Da vida em forma de cartão-postal – clicada com as cores de um banner da CVC e a resolução de mil megapixels –, em que a mistura de céu, sal e sol dispensa qualquer antigripal.