domingo, 28 de julho de 2013

A hora do pesadelo

Não é difícil imaginar a cena: Michel Gondry sendo defenestrado de seu quarto sem janelas pela própria cama, mobília cheia de atitude e personalidade, enquanto o armário bate as portas avisando que é hora de acender o sol, engolir o caderninho de capa mole e deixar o coração anotar os sonhos da última noite no livro de receitas.

Quantas dessas anotações não terão servido de inspiração para seu mais recente filme, A espuma dos dias, baseado na obra homônima de Boris Vian (que não li).

A historinha é até bem careta: rapaz endinheirado (Colin) e mocinha fofa (ah, Audrey Tatou) se conhecem, se apaixonam, se casam, tudo muito bem, tudo muito bom, até que ela descobre que tem uma doença grave, gravíssima, vai piorando, piorando, melhora um bocado, piora de novo, piora mais um tanto e...

... as convencionices param por aí – são sufocadas pelas invencionices do diretor. Pois não basta a campainha berrar, tem que parecer uma barata; não basta o sujeito dançar, tem que ter pernas de flamingo; não basta a comida ser colorida, tem que fazer coreografia; não basta o piano tocar, tem que preparar coquetéis; não basta o sapato calçar o dono, tem que sair correndo feito cãozinho arisco.

E não vou nem alongar a língua pra falar da nuvem que flana por Paris com o casal apaixonado a tiracolo, do arco-íris acionado por controle-remoto, das corridas de carro no interior de uma igreja, do chef morando dentro da geladeira, dos funcionários com cabeça de pássaro na pista de patinação, do caveirão de perninhas da polícia local, do ratinho com focinho de gente, da casa que vai diminuindo com o passar do tempo...

Peraí: por ela vale esticar a língua e umas linhas. Sacada delirante (no bom sentido) mostrar quanto o lar e a existência de Colin vão encolhendo, nublando, ficando a cada dia menos technicolor, mais e mais claustrofóbica, a partir do instante em que Chloé (ah, Audrey) engole uma flor e adoece. A metáfora da vida que passa e não despassa – que descolore, que empoeira, que enferruja, que envelhece – é bonita e triste ao mesmo tempo e espaço. Chega a causar náusea de tão poética.

Mas é das poucas que servem à narrativa, atravancada cena após cena pelas zilhares de bizarrices que Gondry insiste em pintar na tela – esquisitices que em geral não ajudam no desenvolvimento da trama, nem contribuem para que o espectador se atire na toca do coelho. A impressão que resta, ao subir dos créditos, é a de um passeio cacetíssimo por uma lojinha de brinquedos exóticos.

Uma viagem aborrecida pelos devaneios de uma Alice que, diferentemente da menina que conhecemos, teve a cachola amputada na primeira esquina do País das Maravilhas.

domingo, 21 de julho de 2013

Sinal amarelo

A cena se repete toda vez que a sirene de uma ambulância pede passagem: os carros se apertam daqui, se espremem de lá, roçam o meio-fio, sobem nas calçadas e, como se estivessem fazendo as honras para a rainha da Inglaterra, estendem um tapete vermelho onde antes havia apenas congestionamento, impaciência, pressa e buzinas.

Só não agitam aquelas bandeirinhas ufanistas porque elas não estão nos porta-luvas.

Pena que essa lei do asfalto – cumprida à risca mais por gentileza do que por medo de multa, como prefiro acreditar – poucas vezes encontre sinal verde em outros cruzamentos da vida, muito além de placas e pardais.

Porque temos estado quase sempre engarrafados em nossos fusquinhas ou limusines – o espaço interno não importa. Ou será que, no caminho entre a casa e o trabalho, a escola e o mercado, a mãe e a namorada, o pilates e o cardiologista, não temos deixado os vidros dos nossos olhos hermeticamente fechados, o ar-condicionado da nossa alma no máximo, o rádio do nosso coração nas estações mais barulhosas?

Pobre do sujeito que sofre um piripaque e depende de que escutemos a sirene de sua ambulância para chegar ao hospital.

Não escutamos e, quantas vezes, não enxergamos a esposa que pede um beijo quando abrimos a porta de casa; a vó que capricha no almoço de domingo e espera um elogio; o vizinho solitário de que ninguém lembra no Natal; o porteiro que nos ajuda com o vazamento no banheiro e de que esquecemos o nome; o amigo que escreve um e-mail e aguarda apenas um oi-tudo-bem-quanto-tempo; o aluno que senta no canto da sala e mal levanta as sobrancelhas para quem está ao lado; o professor que se esgoela no quadro de giz enquanto trocamos torpedos sobre a festa de ontem; o manifestante que leva o cartaz e briga até por quem não se dá conta de que a luta é de todos; o policial mal pago que cumpre o dever de proteger o patrimônio público e privado e é demonizado por isso.

O pedestre que, candidamente, põe o pezinho direito na faixa e por um triz não atropelamos ao ignorar o sinal vermelho.

Quanta barbeiragem cometemos sem nos dar conta. Por isso, talvez valha a pena de vez em quando abrir a carteira – no bolso esquerdo da camisa – e checar se a habilitação não está vencida. Se estiver, não custa nada voltar à autoescola da consciência, reler as regras do bom senso, refazer as balizas da humildade e estacionar o umbigo em lugar que não feche a garagem de ninguém.

Que só um pouco de atenção aos sinais – não só os de trânsito – é capaz de nos livrar de uma viagem na contramão e evitar acidentes graves.

domingo, 14 de julho de 2013

Café com o presidente

É isso que dá brincar com assunto sério. Foi só o escândalo da espionagem ianque vazar que o bonitão aqui correu pro Face, Twitter e afins pra postar sua última gracinha: dar bom dia ao Obama e convidá-lo prum cafezinho. Resultado: meia dúzia de curtidas depois, o Baraca já estava verdinho no meu bate-papo.

Devolveu a saudação matinal em português mesmo. Teclado com tradução simultânea para qualquer língua; digito aqui na Casa Branca em inglês, sai aí em Buenos Aires em brasileiro, contou ele entre um emoticon e outro com a cartolinha do Tio Sam – mas sem a menor ideia do que seja a América além da fronteira com o México.

Contou também que sabia tudo sobre a minha vida. Tu-do. Das senhas de banco às cores das cuecas. Da data, hora, local e temperatura de quando nasci ao aniversário de namoro com a Fernanda (que até eu desconheço). Sabia ainda cada site que eu visitava, cada música que eu baixava, cada vídeo a que eu assistia.

Que vergonha: o presidente dos Estados Unidos da América, o Nobel da Paz, o marido da Michelle sabendo que eu já entrei no site da Ana Maria Braga pra copiar receita, que eu já baixei música do Michel Teló, que eu já assisti a pegadinha do Mallandro no Youtube. Só pra ficar no que o horário e o decoro permitem.

Assim não pode, assim não dá.

Yes, we scan, ele respondeu em inglês, só pra não perder a piada. Mas não se preocupe. Nada do que você tem feito – nem mesmo falar mal da nossa política externa, das nossas comédias românticas ou do suco de laranja do McDonald’s – é digno de umas férias com tudo pago e direito a acompanhante em Guantánamo.

Ufa, ainda bem, Obama. Eu já estava ficando apavorado com a possibilidade de ser barrado na Disney – feito a Baby e o Pepeu, lembra? Posso até ter meus momentos anti-imperialistas, comer umas esfirras, tomar umas cubas libres (pescou? pescou?) de vez em quando, mas jamais, juro, chamaria minhas filhas de Riroca, Zabelê e Nana Shara.

Seria, e aí não pense que se trata de indireta ou declaração de guerra, um atentado.

domingo, 7 de julho de 2013

Apocalipsilone

Pára tudo (com acento mesmo pelo agudismo da situação). Acabo de ler no jornal de domingo da semana passada que a mais tocada em Bole-Bole há meses – repetindo: há meses – é a bizarrenta “Te esperando”, do Luan Santeiro, aquele projétil de meteoro desachado, topete de Pica-Pau birutista e olhos de Capitu estrabicada que costuma explodir os tímpanos alheios feito rocha extraterrérica de filme catastrofesco.

Pra quem não está ligando o nome à ““canção”” (aspas quádruplas): falo daquela serenata surrealeira cuja letra traz o eu lírico – no último estágio da síndrome de Highlander – bradando que vai esperar a amada “nem que já esteja velhinha gagá/ com noventa, viúva, sozinha, não vou me importar/ vou ligar, te chamar pra sair/ namorar no sofá”.

Não bastasse o fato em si, indigno de manchete nos piores tabloides bolebolenses, a matéria relaciona a balada romanticaquética a uma “linhagem de canções de amor exacerbado que, com menos ou mais humor ou leveza, ficam no limite entre a loucura e o romance. Uma tradição que vai da quase psicopata ‘Every breath you take’ (‘Cada passo que você der/ Eu estarei observando você’) à exagerada ‘Por você’ (‘Eu iria a pé do Rio a Salvador’), passando [...] pela sufocante ‘Esse cara sou eu’ (‘O cara que pensa em você toda hora’)”.

Peraí. Deixa ver se eu entendi: a melô do vovô taradista entrou pro time de clássicos do The Police, do Barão Vermelho e do Roberto Carlos? Essa peroleca do amor gagaísta – que, se juntar letra, melodia e arranjo, não dá (nem) um hit do Raça Negra? Taí maldade das mais maltratânticas – de fazer delirar até cigana charlatanuda.

Mas, como tragédia pouca é bobagice, tem mais: Luanzito declarando, na mesmelenta reportagem, que está numa fase de leitura, de Drummond a Vinicius, tropeçando em Gabriel García Márquez. Outro dia ganhou um exemplar dO amor nos tempos do cólera – com a seguinte dedicatória: “Se Florentino Ariza e Fermina Daza vivessem a sua história hoje, certamente ‘Te esperando’ seria a trilha sonora do casal”.

Quê? Ari e Dadá remexendo as cadeirolas ao som do sertanejo universitário da derradeira idade? Agora parei mesmo. Até com os sufixos saramandistas. Podem chamar a Dona Redonda – que eu tô prontinho pra ter o cérebro devorado.