domingo, 30 de junho de 2013

As outras

Fernanda que não me escute: mas quando saio andando por aí, me apaixono muitas vezes. Pode ser no caminho do trabalho, de casa, da padaria, do banco. Chova ou faça sol entre nuvens. Basta que as Melissinhas daquela mulher atravessem a rua em câmera lenta – o céu azula todinho, o queixo cai e ainda arrasta os olhos.

Basta que o gari dê uma sambadinha entre uma lixeira e outra. Que a vó não resista às bochechas indecentemente fofas da neta e leve o pão doce. Que o motorista do ônibus deixe o volante para ajudar o tiozinho a subir com as sacolas do mercado. Que os amigos dos tempos da brilhantina se encontrem na esquina para rir bem alto das atuais carequices.

Que o ambulante cumprimente até o sujeito que jamais compra nem alfinete pirata.

Que aquele sobrado esteja sempre no mesmo lugar, entre os dois fura-céus: a árvore esparramando sua copa sobre o quintal, o senhor de óculos grisalhos bebendo a caneca na janela do segundo andar, a mulher de vestido gordo varrendo as folhas com a mangueira, o molecote de shortinho verde correndo da água com as mãos sujas de terra e biscoito maizena.

Basta que um pingo da cena tinja a calçada, respingue nos meus pés, que o meu coração, em vez de acelerar, cameralenta – no mesmo passo daquelas Melissinhas.

Basta que, de repente, o mp3 replaye a canção que eu já tinha esquecido que um dia existiu. Que ela sirva de trilha para o beijo do casal diante dos jornais expostos na banca. Que os jornais da manhã anterior cubram o sem-teto que insiste em repetir o mesmo poema para quem vai apressado.

Que um verso se solte do asfalto.

Basta isso para que eu tropece de amores mais uma vez, e a vida – incansavelmente generosa – prove que não se contenta com a monogamia.

domingo, 23 de junho de 2013

Espalhando pianos

Daquelas coisas que só acontecem em Nova York: 88 pianos foram espalhados pela cidade por uma organização sem fins lucrativos, a Sing for Hope, com o intuito de promover apresentações espontâneas e unir as pessoas em torno da música, da arte. Ao final do projeto, com duração de duas semanas, os instrumentos serão doados para escolas, hospitais e instituições comunitárias.
                     
Dessas coisas que deveriam acontecer em Paris, Pequim e Pindamonhangaba; de Abu Dhabi, Amsterdã e Assunção a Zagreb, Zhengzhou e Zhumadian, seja lá onde isso for.

Agora imagine um: você despencando do seu colchão numa linda segunda-feira de dilúvio; dois: encarando ônibus cheio, metrô lotado, trabalho abarrotado, chefe estressado; três: de repente tropeçando num transeunte que não só toca um Chopin celestial – como ainda tem a ousadia de enfrentar um Yamaha vermelho de cauda infinita bem no meio da rua.

Quatro: a vida sendo bela.

E seria igualmente bela numa adorável terça-feira de garoa, numa aprazível quarta de poucas nuvens, numa agradável quinta de sol, numa... Vocês entenderam: os dias seriam melhores – dignos dessa adjetivada toda – se pianos, harpas, corais, pinturas, esculturas, filmes, poemas, chocolates, macarons, chás da tarde, caronas, beijos, abraços, mãos dadas, mimos de desaniversário e demais cortesias fossem espalhados por aí.

Ok: você não é uma ONG; não tem uma centena de pianos sobrando na sua garagem. Também não tem – hum, vejamos – uma filial das Lojas Americanas enfeitada pra Páscoa. Beleza. Mas por que não bater na porta da Dona Mariquinha ou do Seu Fulustreco e lhes oferecer um Serenata ou um Sonho sempre que abrir aquela caixa inteirinha só pra sua pessoa?

Por que não apresentar Gene Kelly e Fred Astaire praquela garotada que não perde uma batalha do passinho? Por que não tirar cópia de uma crônica da Martha ou do Verissimo (dos dois, melhor ainda) praquele amigo que está precisando de uma palavra? Por que não gravar suas canções favoritas do Toquinho, do Vinicius e levar pro filhote da secretária que acabou de nascer? Por que não convidar aquela senhorinha solitária que mora no sobrado em frente prum cafezinho com bolo de cenoura?

Por que não amanhecer dando beijos e abraços naquela criatura que vive sob o mesmo teto – sob o mesmo mundo – que você, ainda que não seja dia de aniversário?

Só se houver razão pra desconfiar do que dizia o famoso profeta dos muros; se houver motivo pra duvidar do que gera uma gentileza. O transeunte tocador de Chopin – ao enfrentar o Yamaha vermelho de cauda infinita bem no meio da rua – não achou nem uma nem outro.

Apenas a chance de dedilhar um céu azul numa segunda-feira enchuvarada.

domingo, 16 de junho de 2013

Por causa de vinte centavos

Não é por causa do ônibus com ar geladinho, meia dúzia de passageiros e motorista zen que se pega todos os dias, às sete – sete e dois no máximo –, no ponto perto de casa. Não é por causa do metrô praticamente londrino, que, com suas infinitas linhas, transforma qualquer expedição entre a Pavuna e a Barra num passeio ensolarado do Leme ao Pontal. Não é por causa dos ferry boats (vulgo barcas) que praticam nado sincronizado na Baía de Guanabara ou no Tietê.

Não é por causa da imensa rede de hospitais e postos de saúde que faz todo paciente se sentir portador de Alzheimer só por ter esquecido o significado da palavra fila. Não é por causa das escolas que somam professores bem remunerados, subtraem indisciplinas e demagogias, multiplicam cidadãos e dividem conhecimento. Não é por causa da excelência swática das nossas forças de segurança, tropas de elite abarrotadas de Capitães Nascimentos.

Não é por causa dos campos de golf verdinhos, verdinhos que revestem o sertão nordestino como um tapete felpudo, onde famílias inteiras se refestelam nas horas de folga, quando não estão plantando e colhendo feijão, arroz, milho, mandioca, até um tubérculo exótico por estas bandas – uma tal de dignidade –, independentemente da estação.

Não é por causa das declarações sempre sensatas e das sobrancelhas impecavelmente benfeitas do ilustre deputado que preside certa comissão de direitos humanos. Não é por causa dos outros deputados, e senadores, e vereadores – tão ilustres quanto –, que invariavelmente diminuem o próprio salário, cortam os próprios benefícios, o próprio auxílio-cueca, ao primeiro sinal de crise econômica nos Países Baixos.

Não é por causa das estradas tão macias e cuidadas quanto o gramado importado do novo Maraca. Não é por causa dos aeroportos tão confortáveis e espaçosos quanto o playground do Thor na mansão Batista. Não é por causa dos portos tão modernos e bem equipados quanto o Projac.

Não é por causa da Copa do Mundo. Muito menos por causa dos Jogos Olímpicos. Quem em sã consciência protestaria contra a realização de eventos que só têm trazido orgulho aos brasileiros? (Minto: têm trazido também grandes mamíferos proboscídeos, da família dos elefantídeos, dotados de longa tromba flexível e forrados de mármore branco dos mais caros. E-le-gan-tér-ri-mos.)

Não é por causa da imprensa incansavelmente vigilante que denuncia qualquer tomate inflacionado onde só pode existir um paraíso tropical, abençoado por Marinhos, Macedos e Malafaias, bonito por (muito mais que) natureza – e que em fevereiro, março, abril... ainda tem carnaval.

É por causa – calaro, óbivio – daqueles vinte centavos a mais na passagem.

Merreca, trocado, esmola que é a síntese do nosso apetite ancestral por molho vinagrete temperado com spray de pimenta. Do nosso desejo freudiano de levar umas cacetadas de homens fardados montados a cavalo. Da nossa vontade uterina de ser xingado de vândalo e rebelde sem causa por um Jabor da vida.

(Que, cá entre nós, é a caricatura violenta da caricatura de um reacionário que a mídia caduca ainda exibe no horário nobre.)

domingo, 9 de junho de 2013

Dois papelotes de Clarice

Entreouvido por aí: preso pode ganhar redução de pena se ler um livro por mês. Terá até trinta dias para dar conta da obra – um clássico da literatura, das ciências ou da filosofia – e deverá apresentar uma resenha sobre ela. Uma comissão avaliará a veracidade do texto e fará uma arguição com o detento.

De cara – ainda amarrotada de sono – achei a iniciativa bonitinha. Fofa. Até inteligente. Combina menos ócio e mais educação, menos população carcerária e mais cultura. Sem contar que atualiza a máxima de Monteiro Lobato: a de que um país se faz com homens livres e livros.

Mas bastou uma água no rosto para eu acordar e vislumbrar o óbvio ululante: o surgimento de uma nova modalidade de crime no Brasil, algo tão sórdido, vil e maquiavélico que nem Conan Doyle, Agatha Christie e Allan Poe imaginaram – o tráfico de letras.

Quem acha que isso é delírio deste que vos cronica se trumbicou: há coisa de dois meses um sujeito foi flagrado negociando um resumo de Dom Casmurro com seus companheiros de cela. Em plena luz do dia. O camarada tentou disfarçar, veio com um papo oblíquo e dissimulado de que só estava promovendo um simpósio sobre a traição (ou não) de Capitu, mas não colou.

Uma semana atrás foram desenterrados do pátio de uma penitenciária em Cordisburgo (MG) quase dez quilos de apontamentos sobre Guimarães Rosa. A maior parte do carregamento tratava de Grande sertão, mas havia ainda trouxinhas de Sagarana, Primeiras estórias e até Tutameia. Há indícios de que os policiais da própria unidade facilitaram a entrada do material no presídio.

E, ontem, a gota d’água. Deu em tudo que é canal. Não se falava de outra coisa na Globo News: o pastor e deputado J. Pinto Fernandes – guia espiritual de onze entre dez meliantes – foi preso em Brasília tentando entrar numa cadeia com dezenas de poemas comentados do Drummond na cueca. E ele não estava sozinho; contava com o apoio de cinco obreiros de sua igreja. Vão todos responder por formação de quadrilha.

Resultado: já há um clamor popular pela abertura de uma CPI que investigue o comércio ilegal de sinopses, súmulas e afins nos xilindrós brasileiros. Tem até juiz do STF defendendo o aumento da pena de quem for surpreendido plagiando o texto alheio, além da prisão sumária, sem direito a fiança, dos cúmplices.

Em que mundo nós estamos. Quem diria que um dia a cola – ela mesma, a velha esticadinha de olho, o papelzinho com todas as respostas da prova, a pesquisa removida sem aspas da enciclopédia ou da internet – viraria coisa de máfia, caso de polícia e estaria prestes a se tornar crime hediondo previsto em lei.

Para alívio de muitos, não retroativa.

domingo, 2 de junho de 2013

Aquele beijo

Bancar o Carrasco por um dia e promover o reencontro do Félix com um velho amigo de infância repercutiu mais do que eu imaginava. Não porque o texto estivesse particularmente inspirado (até estava, vamos combinar). Mas porque inventei de dizer que os dois protagonizariam o primeiro beijo gay da novela brasileira.

Pra quê: minha caixa de entrada transbordou com uma enxurrada de e-mails dos meus nove leitores protestando que a primeira bitoca homoafetiva do folhetim nacional havia se dado – ou se havia dado? – entre Marina (Gisele Tigre) e Marcela (Luciana Vendramini) em Amor e revolução, “clássico” de Tiago Santiago exibido no SBT em 2011.

Até link da cena no Youtube me enviaram.

Enviaram pro sujeito errado. O destinatário deveria ter sido o Seu Walcyr. Afinal, foi ele quem escreveu aquele projeto de capítulo; pelo menos, o espírito dele, que – sabe-se lá por que macumba – baixou em mim na semana passada. Foi o autor global quem rabiscou aquelas linhas, inclusive a afirmação que gerou tanto... babado.

E, cá entre nós, ele (ou eu, nem sei mais) agiu nos conformes, como bom funcionário da casa – que não enxerga selinho que se dê além do Jornal nacional. Se o smack não foi noticiado pelo William, entrevistado pela Patrícia ou comentado pelo Alexandre, não aconteceu. Se não apareceu no Fantástico, não apareceu em lugar nenhum. E pronto. Acabou-se. Vida que segue – dentro da caixinha.

Vejam o caso do UFC, aquela briga de galo feita com gente. Antes de a emissora comprar os direitos de transmissão, a “modalidade” não existia. Simples assim. Podia o Anderson Silva quebrar os ossos do Schwarzenegger e Stallone juntos que continuaria sendo o famoso quem?! Mas agora, amigos da Rede Globo, não há novela sem ao menos um lutador de MMA. É a cota. Como a das periguetes.

Fenômeno semelhante ocorre no Melhores do Ano, prêmio concedido pelo Faustão aos destaques da tevê: não há um ser humano indicado que não seja da Todo-Poderosa. Ah, um cricri dirá, a Hebe já foi homenageada no palco do Domingão com o troféu Mário Lago! (espécie de Oscar pelo conjunto da obra). E quem disse que a Hebe era humana? Que eu saiba, veio do Olimpo e pra lá voltou – linda de viver.

Lindo de viver entrei eu certa vez num táxi, e qual não foi meu espanto ao perceber que o motorista nem sonhava que nossas meninas do vôlei decidiam o ouro olímpico naquele instante, em Londres, com transmissão ao vivo da Record. O incauto do chofer acompanhava com ouvidos de ressaca o Luciano Huck. Loucura, loucura.

Então, como Carrasco por um dia – como funcionário-do-mês-do-ano-da-década-e-até-que-a-rescisão-do-contrato-nos-separe que se preze, que não tira o crachá nem no minuto do comercial –, eu disse e repito, sem direito a cenas dos próximos capítulos: Marquito olha Félix no fundo (dos olhos). Os dois se aproximam em super slow – e se beijam. De pontinha de língua. É o primeiro beijo gay da novela brasileira.

E a câmera se afasta enquanto os sinos repicam. Plim. Plim.