domingo, 28 de abril de 2013

Os produtores

Era uma reprise do Marília Gabriela entrevistao programa dela no GNT: Charles Möeller e Claudio Botelho – os mágicos (de Oz?) responsáveis por grande parte dos musicais que têm lotado nossos teatros nos últimos anos – falando da carreira, da vida, da frase, verso, palavra favorita, coisa e tal.

Conversa vai, conversa vem, arregalei os ouvidos quando escutei que ensaiavam apenas oito semanas – nem um ato a mais – até a estreia das peças. Como assim “oito semanas”? Dois mesezinhos e o Herson Capri vira o Capitão Von Trapp? o José Mayer canta e dança feito um judeu? um bando de jovens estreantes cresce os cabelos e viaja até a Era de Aquário?

Quem assistiu às montagens de A noviça rebelde, Um violinista no telhado e Hair (entre outros) sabe: os caras fazem misérias, digo, riquezas no palco. Suas peças são o que há de mais Broadway fora da Broadway. Cenários, figurinos, coreografias, atores/cantores, as versões em português das músicas – nada é menos do que ótimo.

Tudo funciona com precisão. E são só oito semaninhas de preparação com o elenco. De oito a dez horas por dia. De segunda a sábado. “O nome disso é profissionalismo. Temos que pagar todos os envolvidos desde o primeiro minuto. Por isso não podemos nos dar ao luxo de ficar meses e meses ensaiando”, um deles disse algo mais ou menos assim.

Enquanto eu devaneava algo mais ou menos assim: Charles Möeller e Claudio Botelho, chefes do comitê organizador da Copa e das Olimpíadas. Quatro anos – nem um Pan-Americano a mais – para levantar estádios e ginásios sem estourar orçamentos, modernizar aeroportos sem esticar prazos, ampliar a rede hoteleira sem construir puxadinhos, despoluir lagoas e baías sem jogar sujeira pra debaixo do tapete.

Ou, melhor, Charles Möeller e Claudio Botelho, prefeitos da minha cidade, governadores do meu estado. Um mandato – nem uma reeleição a mais – para desengarrafar o trânsito, desobstruir as artérias dos hospitais, alfabetizar todos os alunos, diminuir os índices de criminalidade, urbanizar as favelas, transformar moradores de rua em cidadãos.

Sonho (distante) de uma crônica de verão? Talvez. Afinal, ainda estamos no outono. Mas quem sabe com um pouco do tal profissionalismo, com respeito ao dinheiro alheio – nosso no caso – e trabalhando de oito a dez horas por dia, de segunda a sábado, a dupla não conseguisse o que tantos tentam (tentam mesmo?) e não conseguem: mudar a realidade.

Alguém na plateia dirá que estou misturando ópera com chanchada. Pode ser. Pode ser que, mesmo após a queda da cortina na gestão Möeller-Botelho, não saíssemos por aí cantando na chuva, dançando no meio da feira, na fila do banco ou no vagão do metrô – como acontece nos musicais –, mas, quero acreditar, não viveríamos mais neste país do futuro que insiste em não vestir o figurino do presente, do ensaio que não acaba quando toca o terceiro sinal, do faz de conta que não chega nunca ao final feliz.

Onde a vida lembra sempre um cabaré de promessas desbotadas. E a estrada de tijolos amarelos (superfaturados, claro) parece jamais levar à Cidade Esmeralda.

domingo, 21 de abril de 2013

Invasão de privacidade

Já era tarde, tarde. O relógio da cozinha ardia 12 horas e 37 minutos. Trinta e oito. Eu tinha que estar na escola às treze. Saí tão apressado que esqueci de fechar o gás. Não voltei. Chamei o elevador e desci as escadas. Boa tarde, boa tarde – o porteiro mal me reconheceu. Bati o portão. Corri até o ponto de ônibus.

Um homem falava no celular: tem alguma coisa acontecendo com a Alice. Há duas ou três semanas ela não sai de casa. Também não tenho visto o François nem o menino. Quero ver meu sobrinho. Acho que estão escondendo alguma coisa de mim. Vou lá agora tirar essa história a limpo.

O sujeito tomou o primeiro táxi. Tomei o segundo: siga aquele carro. (Sempre quis dizer isso.) Quatro, cinco ruas depois, paramos diante de um casarão que eu jurava abandonado. Tocamos a campainha. Fomos recebidos por uma mulher que fazia jus ao nome. Transpirava um ar de menina apesar das primeiras rugas.

Uma brisa descoloria seus olhos verdes.

O homem perguntou do menino. Só queria saber do sobrinho. Onde ele está? O que você fez com o garoto? Alice respondeu com uma xícara de chá. Deixei os dois e subi até o andar dos quartos. O do menino tinha brinquedos espalhados, o Playstation ligado, aquela musiquinha do Super Mario.

O dela estava com a porta entreaberta: alguém tomava banho. A cama toda desarrumada. Uma bolsa de viagem sobre os lençóis – manchados de vermelho. Um cheiro de carne podre vinha da sacola. Me aproximei como as moscas. Puxei o zíper com cuidado; ainda assim, fez um ruído de parar o mundo.

O chuveiro parou.

O relógio ardia 12 horas e 38 minutos. Trinta e nove. Eu tinha que estar na escola às treze. Saí tão apressado que não me despedi de Alice. Esqueci até de fechar o gás. Não voltei. Chamei o elevador e desci as escadas. Boa tarde, boa tarde – o porteiro mal me reconheceu. Bati o portão. Corri até o ponto de ônibus.

Um homem falando no celular tomou o primeiro táxi. E eu tomei o 226, que veio logo em seguida. Já era tarde, tarde.

domingo, 14 de abril de 2013

Secos e molhados

Daqueles instantes de epifania: secando o chão da cozinha, me dei conta de que viver é enxugar. A pia depois de lavar a louça, o rosto depois de fazer a barba, o cabelo depois de tomar banho, o suor depois de correr na esteira, a lágrima depois de ver filme triste, o texto depois de rabiscar mil adjetivos.

As horas depois de perder tanto tempo.

Quantos Natais não festejados por causa de mal-entendidos familiares; quantas happy hours não curtidas por causa de horas extras desnecessárias; quantas risadas não dadas por causa de choro protocolar; quantos amigos não reunidos por causa de solidão ranzinza; quantas ruas não exploradas (a pé) por causa de ônibus vazio no ponto; quantas histórias não descobertas por causa da velha preguiça de ouvir.

Quantos bons romances não lidos por causa de novela ruim; quantos filmaços não vistos por causa de blockbusters genéricos; quantas canções dos Beatles não degustadas por causa do sucesso dadaísta da estação; quantos ceviches, tabules e temakis não experimentados por causa do arroz e feijão de todo dia; quantas viagens não feitas por causa da velha preguiça de descobrir.

Quanto pôr do sol não apreciado por causa das janelas fechadas.

Fechadas por medo de chover, de molhar o chão da cozinha de novo (do novo?) e ter de secar tudo outra vez. O medo e a preguiça – a velha preguiça – de suar, de chorar, de reescrever o texto quantas vezes ele exigir, de enxugar todo o excesso, de cortar cada adjetivo – até que reste apenas o que é substantivo.

Os Natais, mas também as briguinhas que aproximam; as happy hours, mas também a hora extra indispensável; as risadas, mas também o choro que ensina; os amigos, mas também a solidão que faz pensar; as ruas a pé, mas também o ônibus com ar-condicionado; os livros, mas também as novelas com Odete Roitman; os filmaços, mas também os blockbusters com personalidade; as canções dos Beatles, mas também os ilariês de pular em festa ploc; os ceviches, tabules e temakis, mas também o arroz e feijão de mãe.

E ainda as histórias de amor e vingança, as viagens de avião e bicicleta, o pôr do sol onde a gente estiver, as janelas abertas: por onde há de entrar não só a chuva que lava a alma, mas também o cheiro da terra molhada – que enxuga o coração e o revigora para o próximo dilúvio.

domingo, 7 de abril de 2013

Rosebud...

Acabo de subir mais um degrau (dos grandes) rumo ao topo da pirâmide cinéfila: enfim assisti ao famigerado Cidadão Kane, de Orson Welles, filme que costuma encabeçar onze entre dez listas de melhores de todos os tempos.

Que roteiro. De matar, esquartejar e enterrar de inveja o escritor mais experiente e premiado; imagine eu então, mero contador de causos. Entremeado por flashbacks e lembranças de um e outro personagem, o script ilumina e penumbra a história do milionário megalomaníaco Charles Foster Kane (o próprio Welles), permitindo e ao mesmo tempo impedindo que o decifremos.

Não é à toa que a fotografia ecoa expressionismos ao usar como matéria-prima a sombra, que jamais nos deixa entrever a alma do protagonista, a não ser alguns dos espectros que a compõem. O mesmo vale para a montagem, tecida adequadamente como uma colcha de retalhos – a metáfora perfeita para a trajetória de Kane; para a estrada (esburacada) que cada um de nós percorre durante a vida.

E aí chegamos ao que é essencial no filme de Welles: a reflexão sobre aquilo que perdemos dia após dia quando escolhemos ou somos levados a escolher determinado caminho. O que teria acontecido com o menino Charles – quem ele seria – se não o tivessem arrancado de seu tão querido trenó? Se não o tivessem separado de sua família?

O que teria acontecido com você se tivesse se declarado àquela paixão? Se tivesse subido naquele ônibus? Se tivesse passado naquela prova? Se tivesse esperado aquela carona? Se tivesse aceitado aquela proposta? Se tivesse vencido aquele jogo? Se tivesse apostado naquele número? Se tivesse escrito aquele romance até o final?

Quem seria?

Difícil saber. Bobagem tentar descobrir. Porque não há pote algum no fim do arco-íris. O que há é o próprio arco-íris: a estrada que cada um percorre – que cada um é –, feita de sins e nãos, de espectros e retalhos, de incontáveis e às vezes inesperados desvios, onde não há espaço para o talvez, para o e se.

O jornalista que investiga a vida de Kane, diferentemente do espectador, acaba não desvendando o significado de Rosebud – palavra que o magnata pronuncia no leito de morte. Pouco importa. Ela não é a chave a abrir todas as portas do mundo de Charles; é apenas uma peça de um quebra-cabeça aparentemente infinito.

Quebra-cabeça que somos todos nós, emaranhado de peças achadas e perdidas, impossível de se montar, de se ver na totalidade.

Resta aos outros e a cada um de nós o mistério de quem somos. O fascinante mistério. E o caminho, claro. A tal estrada. Que, esperamos, não nos conduza – como se deu com Kane em seu último ato – a um imenso labirinto de corredores e salões vazios; a um mausoléu distante de tudo, de todos e até (ou especialmente) dele mesmo.

A um lugar que nada mais é do que a moradia daqueles que esquecem quem são.