domingo, 25 de novembro de 2012

Bodas de papel

A última crônica da Martha Medeiros fala de uma diferença básica entre os relacionamentos: enquanto uns são produtivos e felizes – nos fazem evoluir e ser a melhor versão de nós mesmos –, outros são limitantes e inférteis – despertam em nós o que guardamos de pior.

Boa pista para saber que páginas temos escrito, que autores e personagens temos sido. A hora é redondinha para pensar nisso. Pelo menos no nosso caso. Amanhã completamos um ano de casamento. Exatos 366 dias (2012 é bissexto) de um romance surpreendente a cada capítulo.

Pois eu desconfiava à-becíssima da minha capacidade e disposição de assumir as responsabilidades de um cotidiano sem papai e mamãe ao alcance dos dedos. Sem as regalias do hotel mil estrelas que a casa deles era. (Que ainda é, e agora mais, porque passei a ser hóspede recebido com honrarias de chefe de Estado. O hotel virou resort.)

Você não desconfiava. Parecia ter certeza – desde os primórdios do namoro – de que eu estava apto à vida a dois. De que eu dava sinais claros de vir a ser o marido que vai à rua sob chuva comprar o remédio para o seu resfriado; que troca a roupa de cama e lava a louça do almoço; que poupa religiosamente uns trocados para viagens a castelos e outros destinos encantados; que encara uma pista de dança a noite inteira sem reclamar do sapato; que escuta suas angústias, raivas, tristezas e etcéteras com beijitos nas bochechas.

Que enfrenta com diligência, bravura – e aspirador a tiracolo – qualquer barata cascudamente repugnante de até dois centímetros.

Ah, a recíproca é verdadeiríssima. Em todos os quês. O que me dá uma certeza também: de que temos escrito páginas de uma história produtiva e feliz; de que temos sido bons autores e personagens – a melhor versão de nós mesmos.

Só não tenho sido o sujeito – uma goleada de perdões – que ignora futebol, mesas-redondas e demais acréscimos. Mas aí já seria pedir o marido perfeito, né? Seria aceitar a existência de duendes e fadas. Seria acreditar em candidato-carochinha às vésperas de eleição. Seria levar a sério os versos do Roberto. E esse cara – avesso a maracanices – definitivamente não sou eu. Acho que jamais seria.

Sorte minha que você não exige edição revista e atualizada de mim. Guarda no coração esta versão mesmo, sem capa dura, papel especial e ainda com uma ou outra errata.

domingo, 18 de novembro de 2012

Skyfall

Uma nota do cinquentenário tema de John Barry: luz. Uma silhueta ao longe: câmera. Um close naqueles olhos azuis: ação.

A primeira sequência de tirar o fôlego, prender a respiração, cortar os pulsos etc. e tal, com requintes de missão impossível (e trocadilho, por favor): carros pá! motos pá! pá! os telhados de Istambul o mercado pá! um trem pá! pá! um trator pá! pá! pá! sock! sock! o túnel pow! pow! pá!

Do tiro certeiro (ou não) para os créditos: Monro Bassey Jones Sinatra Armstrong Bassey McCartney Lulu Simon Bassey Easton Coolidge Duran A-ha Knight Turner Crow Garbage Madonna Cornell White & Keys – a vez de Adele. Me agarro na voz dela enquanto o céu cai e a tela se desfaz em revólveres lápides corpos sombras chamas.

Cá entre nós, para fazer clipe de abertura da série 007, o sujeito não pode ser lá muito certo das ideias. Ou precisa ter cheirado de duas a três pedrinhas de diamantes. Dos bons. Dos eternos.

Por falar neles, suas melhores amigas, as girls (Naomie Harris e Bérénice Marlohe), surgem logo: olhares lábios curvas decotes descartáveis  na batida do martíni perfeito.

Surge ainda o novo Q (o jovem Ben Whishaw), para dar o ar da graça ao filme: uma pistola e um radiotransmissor parecem pouco para quem espera canetas explosivas; mas, acredite, não são.

Como também não é pouco o vilão. Longe disso. Ele entra em cena, rouba a cena, põe o mundo e (o que é bem pior) o Reino Unido em perigo: um Javier Bardem que não é só mais um Silva – inimigo no abismo da (in)sanidade, que não sabe se come ou mata o herói; Coringa sem pó nem batom (ao menos denotativamente), mas com cara e caráter igualmente deformados pelo passado; criatura em ruínas, à beira de um ataque de pelanca sob a peruca louríssima.

E é das ruínas – só que da velha mansão Skyfall – que nasce e renasce o agente secreto a serviço de Sua Majestade, com licença para matar e viajar de primeira classe pelos quatro, cinco, seis cantos mais espetaculares do planeta; explodindo a virilidade, a elegância e – por que não – a sensibilidade de um Daniel Craig a cada aventura mais à vontade nos corredores do MI6.

Seu nome? (Não resisto.)

Bond. James Bond.

domingo, 11 de novembro de 2012

Licença poética

Passei a semana invejando um verso do Manoel de Barros: “Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário”. Quer dizer, invejando qualquer criatura capaz de se identificar com ele. De passar horas fazendo o desnecessário. Cantarolando sem pudor o desnecessário. Somente o desnecessário. O ordinário é demais.

O preciso, o cotidiano, o fundamental está lá, nem precisa sussurrar sua existência: o chão cabeludo do apê carecendo um aspirador; os tênis vindos da rua gritando um sabãozinho básico; as contas na gaveta implorando uma visitinha ao caixa eletrônico; as redações no fundo da mochila (ou os originais no canto da escrivaninha) exigindo acentos, vírgulas, coesões e coerências; a louça na pia; os lençóis pra trocar; o pó pra tirar; os presentes de Natal.

Todos convencidos de que o James aqui atenderá seus pedidos na primeira hora. Tolinhos. Estão reloginhamente enganados: o James aqui atenderá seus pedidos no primeiro... minuto. Nem um segundo a mais.

É a vida seríssima (de terno e gravata) me empurrando sucessivas prioridades de gente seríssima, eu transpirando responsabilidade – ou tendo mais uma crise de TOC, o transtorno obsessivo dos caxias – e trabalhando arduamente para fazer o que é necessário. O extraordinário é demais.

Demais? Escrever, sobretudo. Escrever, escrever com a mesma presteza com que aspiro os confins da casa; com que esfrego solados até arrancar a laminha mais encardida; com que levo os boletos para se bronzear no leitor de código de barras; com que acentuo e virgulo tanto era-uma-vez-minhas-férias quanto política-cultura-e-periferias-urbanas-diálogos-interdisciplinares-de-Aristóteles-a-Nietzsche.

Que me desculpem as emergências – mas escrever é preciso, é fundamental. E um dia há de ser cotidiano e ordinário. Somente o ordinário.

Por ora, no entanto, é (quase) inevitável atender os pedidos da tal vida seríssima. Sorte que de vez em quando ela tira o terno, afrouxa a gravata e se distrai com um verso de Manoel. Só assim o James aqui relaxa e goza uma licença poética.

Ainda que seja no último minuto.

domingo, 4 de novembro de 2012

Posso te falar uma coisa?

Aconteceu no Face. Bastou o Mestre lamentar o fato de a cantora Vanusa “submeter-se” (palavrinha dele) à propaganda do cartão Visa – que recorda o constrangedor episódio do hino nacional – para os discípulos o acompanharem em procissão. Pensei a mesma coisa. Concordo plenamente. Que triste. Quanta degradação. Tudo pelo vil metal.

Haja choro, vela e ranger de dentes.

Felizmente, porém, surgiu uma voz que evitasse a unanimidade mala (ou mula, sei lá). Que descurtisse o queixume do professor e não o compartilhasse com meio mundo.

Que lembrasse o quão maravilhosa é a capacidade do ser humano de rir de si mesmo, de não se levar (tão) a sério, de transformar em piada um pretérito imperfeito.

Como um dia fez o Byafra ao estrelar um comercial em que estridulava “Sonho de Ícaro” e botava o ladrão de automóvel para correr, correr... voar, voar... subir, subir...

Ou o atorzão Ricardo Macchi (o eterno cigano Igor da novela Explode coração) ao tirar um sarro do próprio talento contracenando com o pequenino Dustin Hoffman numa peça publicitária da Fiat.

Nem preciso dizer que os três – Vanusa, Byafra e Macchi – faturaram bons trocados e preciosos quinze segundos de fama nessas brincadeiras. Trolaram a si mesmos e ainda lucraram com isso. Ah, vale destacar: eles não foram obrigados a comer jiló, amarrados no alto de um poste ou torturados com requintes de Jigsaw até que aceitassem participar das respectivas campanhas.

Por fim: se eu fosse a Vanusa, não faria mais um showzinho sequer sem errar a letra de pelo menos uma canção  de propósito, claro. Certeza de que a plateia viria abaixo.

Quiçá pediria bis bradando retumbantemente Amada! Idolatrada! Salve, salve!