quinta-feira, 31 de maio de 2012

Os inoxidáveis

Assistir ao musical Cabaret me deu uma certeza: a Cláudia Raia chegará fácil, fácil aos duzentos anos e dançará até os trezentos. Por baixo. A vitalidade da moça no palco não surpreende – ela já fez e aconteceu outras vezes –, mas ainda impressiona. Muito. Sua Sally Bowles arrasa mil e um quarteirões, deixando qualquer Katrina com jeito de brisa.

Madonna também é assim – inoxidável. Entra ano, sai década, e lá está ela sobre e sob luzes se reinventando, dando de ombros, braços, pernas, cabeça para o tempo.

Como um Michael Schumacher, que insiste em não tirar o pé do acelerador apesar de todos os troféus levantados e recordes batidos. O homem está na pista. É a pista.

Como um Silvio Santos, que parece ter nascido num auditório cheio de colegas de trabalho e de lá jamais saído. Nem sairá. Porque achou ali a fonte da juventude, o baú da felicidade eterna.

Como um Oscar Niemeyer, que desafia todos os aniversários e todas as leis da engenharia para continuar criando, projetando, arquitetando, desenhando. A própria vida.

Como a professora que não larga a sala de aula mesmo depois da aposentadoria; como a dona de casa que não admite nadíssima fora do lugar mesmo depois de bisavó; como o médico que não desliga o celular mesmo depois de cinquenta anos de profissão; como o escritor que arrisca mais um romance mesmo depois de quarenta publicados.

Que eu chegue assim às minhas cem velinhas sobre o bolo – com a vitalidade da Cláudia, a luz da Madonna, a insistência do Schumacher, a juventude do Silvio. Criando feito o Niemeyer.

Que eu seja inoxidavelmente infinito enquanto dure.

domingo, 27 de maio de 2012

Metas e objetivos

Notícia de última hora: o governador do Rio, Sérgio Cabral Filho da Mãezinha Querida, foi ao Monte Olimpo, digo, ao Supremo Tribunal Federal (STF), questionar a constitucionalidade das gratificações de adicional por tempo de serviço sobre os vencimentos dos servidores, entre elas os triênios. (Militares foram excluídos da história por terem regras próprias ou, quem sabe, meia dúzia de canhões voltados para o Palácio Laranjeiras.)

O nobre chefe do poder executivo fluminense alega que o governo deseja criar novos planos de cargos, salários, esmolas, donativos e outras caridades para seus tão adorados funcionários – só que não mais atrelados ao tempo, tempo, tempo, tempo de serviço, mas sim ao cumprimento de metas, objetivos e demais boas intenções.

Não preciso dizer que achei a ideia genial. 

Tão genial que deveria ser estendida aos maiores servidores da nação: os políticos. O vereador só receberia o auxílio-gasolina se asfaltasse as ruas da periferia; o prefeito só ganharia o auxílio-merenda se reformasse as escolas; o governador só colocaria no bolso o auxílio-viagem-a-Paris se diminuísse os índices de violência, saneasse as favelas, aparelhasse os hospitais existentes e construísse outros, levasse o metrô aos quatro cantos da capital e arredores.

Caso contrário, só entrariam na conta dos ilustres representantes do povo o salário de fome a que têm direito, um ou outro desviozinho da verba da ONG, uma ou outra comissãozinha pela licitação fraudulenta dos antibióticos, um ou outro qualquerzinho pelo superfaturamento da obra da ponte, uma ou outra sobrinha do caixa dois da campanha.

Nem um centavo a mais.

Principalmente aquela aposentadoriazinha após dois mandatos. Porque isso já seria gratificação de adicional por tempo de sem-vergonhice.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O xis da questão

Já se disse quase tudo sobre a entrevista de Xuxa ao quadro “O que vi da vida”, do Fantástico. Baixinhos, altinhos, seguidores, detratores, indiferentes, até aqueles que juram nunca assistir nem a comercial de pirulito na Toda-Poderosa Platinada não resistiram à loira – e deram seu pitaco sobre o assunto mais importante de todos os tempos da última semana.

Por isso, não vou repetir aqui as lenga-lengas que tomaram conta das redes sociais nesses dias, como a de que a apresentadora andava esquecida e precisava aparecer; a de que era hipócrita ao revelar ter sido vítima de abuso sexual e, ao mesmo tempo, mover céus e infernos para omitir a famigerada cena com um menino de nove ou doze anos no filme Amor estranho amor; ou a de que o dominical da Globo planejou seu depoimento para alavancar a audiência.

Que a gaúcha de Santa Rosa já não está no auge da carreira, é evidente. Ilariês e tindolelês são hoje apenas uma saudade de quem teve a sorte de crescer nos anos 80. Daí a afirmar que ela só quis chamar a atenção para si é mera conjectura. Especulação. O fato é que chamou a atenção, sim, para a questão da violência sofrida por crianças e adolescentes Brasil afora.

Que a moçoila interpretou, no longa dirigido por Walter Hugo Khouri, uma garota de programa que seduz um garoto, é verdade. Daí a obrigá-la a recordar diante das câmeras essa passagem e condená-la ad nauseam por fazer uma sequência erótica numa pornochanchada do início dos anos 80 é coisa de quem tem como esporte favorito atirar tamanco no telhado do vizinho.

Que a revista eletrônica comandada por Zeca Camargo, Renata Ceribelli e Tadeu Schmidt tirou várias casquinhas do testemunho da estrela para ganhar uns pontinhos no Ibope e desbancar a nobre concorrência de Pânicos e companhia, ninguém duvida. É a isso, aliás, que dão o singelo nome de capitalismo. Ca-pi-ta-lis-mo.

O resto é conversa fiada. Tara de quem insiste naquela ladainha – que invariavelmente ressurge – de que a Xuxa teria erotizado a infância de uma geração inteira. De fato, muitos amigos meus estão até hoje fazendo terapia (na base do tarja preta) por causa daquelas ombreiras enormes, daquelas botas de cano longo, daquelas xuxinhas no cabelo.

Por falar nisso, tá na hora, tá na hora de tomar meu Rivotril.

domingo, 20 de maio de 2012

Anos dourados

Não bastasse ressuscitar Odete Roitman, Viúva Porcina, Ravengar e tantos outros personagens inesquecíveis da nossa teledramaturgia, o Viva (canal de tevê por assinatura) tem fechado suas noites com reprises do Globo de ouro, clássico programa musical que embalou os anos 70 e 80 ao som dos hits da época.

Bom demais rever Lulu Santos considerando justa toda forma de amor; Wando sujando o palco de carmim, fogo, paixão e calcinhas; Fagner perdoando nossos deslizes, ombreiras e penteados; José Augusto navegando sonhos como nuvem passageira, chuvas de verão; Luiz Caldas voando feito abelha pra pousar na nossa flor.

Haja amor.

Melhor ainda lembrar Rosana desfilando – como uma deusa – aqueles figurinos hoje felizmente tão perto das lendas; Cazuza querendo uma ideologia pra viver; o Trem da Alegria ensinando a plateia a jogar ioiô; a rainha Xuxa dançando a festa do estica-e-puxa com seus súditos; o Roupa Nova gritando pra todo mundo ouvir seus versos despudoradamente românticos.

E o que dizer dos refrões e artistas aparentemente deletados da nossa memória? O ilha-ilhá-do-amor-Madagascar-ilha-ilhá-do-amor-Madagascar, da afrodescendente Banda Reflexus; o será-que-ela-me-quer-divina-ou-é-mulher, do Roberto "Arrebita" Leal; o não-está-sendo-fácil-viver-assim-você-está-grudado-em-mim, da Kátia Cega.

Impagavelmente chicléticos.

Tão chicléticos que tenho passado os últimos dias cantarolando obstinadamente cada um deles. Para desespero da Fernanda – já esgotada dos meus solos à Guilherme Arantes.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Toda nudez

Carol deixou a casa mais vigiada do Brasil com uma tevê, dois automóveis, cinquenta mil reais e quinze minutos de fama. Gastou os primeiros segundos no microfone do Bial mandando beijos para todos que torceram pela vitória dela. Ah, e pro meu pai, pra minha mãe e pra você. (Como se o reality fosse xou e o apresentador, a Rainha dos Baixinhos.)

Não demorou para que a recém-nascida celebridade pagasse (ou vendesse) peitinho, bundinha, coxinha no Paparazzo. O que demorou mesmo foi a sessão de fotos, realizada num açougue do Leblon. Isso aí. Num açougue. Do Leblon. A mais nova modelo da paróquia teve de bancar a mulher filé. E acabou aquela tarde (carne) moída.

Chegou em casa, ligou a internet. Doida para saber da repercussão do ensaio. Abriu o Twitter, o Face, o site do Leão Lobo, a caixa de e-mails. Mensagem da Pati, da Tati, da Nati, da Cati. Link disso, daquilo, daquilo do Brad. Opa. Que calma nessa hora. É daquilo do Brad. Do pinto do Pitt. Carol não resistiu. Clicou. 

E se clicou.

O vídeo gravado pelo namorado – aquele da festinha em Búzios – espalhou-se por toda a rede. Em pouco tempo, o país, o mundo e até as galáxias muito, muito distantes passaram a conhecer o interior da menina do interior que nem os mais fiéis telespectadores do pay-per-view tiveram a chance de espiar. Para nooooooossa alegria.

Moral da história: agora Carol está no Jornal Nacional, diante da Patrícia Sempre Ela Poeta, pedindo Justiça (com Jota Jigante e alguns etcéteras de crueldade). Exige monstro, xepa, quarto branco, prova de resistência e paredão – além de indenização por danos morais – para o sujeito que lhe tentou extorquir dez mil pilas para não vazar o filmete.

(Que, cá entre nós, não vale nem meia dúzia de estalecas.)

domingo, 13 de maio de 2012

Mulher maravilha

Ela não possui a força de Hércules, a sabedoria de Atena, a beleza de Afrodite, a velocidade de Hermes. Não tem laço mágico, braceletes indestrutíveis, tiara-bumerangue, jato invisível. Jamais foi integrante da Liga da Justiça, nem estrela de seriado dos anos 70. Em momento algum – que eu saiba – vestiu shortinho azul com estrelinhas brancas.

Mas só ela é capaz de preparar as almôndegas mais suculentas, o bolo de cenoura mais fofo; de coar o feijão diariamente para o filho que não come o caroço; de acordá-lo aos cafunés no meio da noite para dar o remédio na hora certa; de não dormir enquanto ele não chega da balada; de cortar as unhas do seu pé; de lavar suas cuecas; de ajudá-lo a fazer o cartaz para a escola.

De escutar suas histórias (e ler seus textinhos, claro) com atenção de fã número um; de enxugar suas lágrimas com paciência de monge tibetano; de festejar suas alegrias como se fosse as dela; de repreendê-lo sem chinelos ou cintos na mão quando necessário; de incentivá-lo feito vascaína na arquibancada mesmo nas pequenas derrotas do dia a dia.

De abraçá-lo em silêncio e dizer-lhe todas as boas palavras apenas com o coração.

De deixar o fogão, o tanque, o aspirador, o telefone, o computador, a revista, o livro, o rádio, a tevê, a ginástica, a manicure, a feira, o supermercado, o shopping, o cinema, a festa, a viagem, o estudo, o sono, o resfriado, a menopausa, a tristeza, a oração, a amiga, o marido – ela própria até – para salvá-lo do perigo, para estar ao seu lado.

Por tudo isso – e por ser a única pessoa a aparecer quando certa criaturinha desesperadamente gritava "Manhêêêêêêê, acabeeeeeeei" –, ela merece o beijo mais doce, o abraço mais apertado, o carinho mais desapressado, o presente mais bonito, a homenagem mais justa, o agradecimento mais sincero, a alegria mais desejada.

Os dias mais felizes.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Estão rolando os dados

Disparam a metralhadora cheia de novidades enquanto o sol vence a cortina. Enquanto o relógio atrasa a hora. Enquanto a tevê acorda o bicho. Enquanto a água ferve o dia. 

Enquanto – o homem corre na direção contrária, o pódio não alcança o primeiro lugar, o beijo da namorada vaza nas redes, os ratos enchem a piscina, as ideias desenganam os fatos.

A puta frequenta as festinhas do Grand Monde, o ladrão posa para a capa da revista, a bicha enfeita a missa de domingo, o maconheiro marcha feito soldado cabeça de papel.

Mil rosas são roubadas.

O poeta não exagera mais nas cores, o amor não é mais reinventado, o liquidificador não guarda mais segredos, o herói não morre mais de overdose.

O inimigo está no poder.

E aquele garoto, o doce Zuzinha, não vai mudar o mundo. Não o elegeram chefe de nada. Não o convidaram para o banquete. Não lhe ofereceram nem uma Coca zero.

Por aqui a água ferve, o dia nasce quase feliz. A tevê acorda, o bicho precisa dizer que te ama. O relógio atrasa, a hora faz a vida breve. A metralhadora dispara, o tempo não para.

Não para, não, não para.

domingo, 6 de maio de 2012

Encantados

Uma amiga já tinha me avisado: você não vai comer quase nada na sua festa de casamento. Dito e feito: estava eu tão disposto a me a-ca-bar na pista de dança, que mal vi docinhos e canapés. Sorte minha que a Fernanda – a fada com bochechas de princesa que o Cupido flechou no meu caminho – sabiamente resolveu congelar alguns quitutes.

Cá entre nós, eu não acreditava que, após meses de inverno rigoroso no freezer aqui de casa, as gostosuras continuassem vivamente saborosas. Engano meu. O bombom continuava com aquele aroma de cappuccino feito na hora. O beijinho de coco continuava doce, doce. A trufa de nozes continuava surpreendentemente... trufa de nozes.

Como se um feitiço trouxesse novamente à vida cada uma daquelas delicinhas.

Seria bom também – incrível, fantástico, extraordinário, eu diria – se pudéssemos fazer o mesmo com nossos corpitchos: hibernar por umas semanas, meses, anos, décadas, o século necessário, e acordar tão vivamente saborosos quanto no instante do congelamento. Com o mesmo aroma, a mesma doçura, a mesma imagem no espelho. É nozes!

Assim, poderíamos esperar sossegadamente – sem perder um segundo de juventude – até que a novela chata chegasse ao último capítulo; que o filme tão aguardado estreasse; que a modinha do sertanejo universitário passasse; que o Faustão e similares se aposentassem; que o Mano (ou o treinador da vez) escalasse uma seleção digna da Seleção.

Que todo trenzito do metrô fosse confortável; que toda favela fosse urbanizada; que toda escola fosse respeitada; que todo hospital fosse bem equipado; que todo ladrão fosse preso; que toda licitação fosse honesta; que toda cota racial fosse dispensável; que todo preconceito virasse uma lenda distante; que toda desigualdade social fosse extinta.

Que o Brasil fosse um país sério.

Pensando bem, talvez não seja uma ideia tão incrível, fantástica, extraordinária ficar tanto tempo na geladeira. Vai que o mundo termina e a luz apaga. Periga nossos sonhos derreterem.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Famigeradas

Já é notícia velha, senil até: o Supremo Tribunal Federal validou, por unanimidade, a adoção de políticas de reserva de vagas para garantir o acesso de negros e pardos a instituições de ensino superior em todo o Brasil-sil-sil. Noutras palavras, estão enfim legitimadas as tão discutidas (ou discutíveis) cotas raciais. Segundo os ilustres ministros que julgaram o tema, as famigeradas são necessárias para corrigir o histórico de discriminação no país e reduzir a desigualdade.

A-hã.

Deixa ver se eu entendi: o bacuri que teve a infelicidade de nascer numa comunidade carente (de saneamento básico, de escola nota dez, de hospital saudável, de paz em cada beco, de lazer na pracinha), mas a felicidade de ser mais corado que o vizinho, terá mais chances de entrar numa universidade? O Estado – que o abandonou desde o começo da vida, que não lhe assegurou os direitos fundamentais – vai agora remediar seus erros com um paliativo?

Maravilha. Nada mais conveniente que maquiar a própria incompetência – e descaso – com um bocado de demagogia. 

A sensibilidade dos ilustres ministros, em sua maioria senhores brancos, foi tão imensa que me comoveu. Por pouco não chorei. Quanta generosidade e boa vontade com os povos oprimidos pelo Sistema e pela História, esses deuses que nos maltratam ano após ano, século após século, independentemente dos nossos sinceros desejos de igualdade.

Bom, já que sou voto vencido pela unanimidade do Supremo (que jamais foi burra, seu Nelson), gostaria ao menos que a genial ideia das cotas extrapolasse a senzala das raças e se expandisse por outras casas-grandes. Exemplo: o Congresso Nacional. Que tal passarmos a reservar umas vaguinhas para políticos honestos, uma vez que, na base do voto, não arrumamos nada?

Quem sabe assim um dia tenhamos representantes verdadeiramente dispostos a tratar as causas da nossa miséria, não apenas preocupados em mal administrar suas consequências. Quem sabe assim um dia não precisemos de cotas e quetais para "fazer justiça" àquele bacuri preto, branco, amarelo ou vermelho – que teve a infelicidade de nascer numa comunidade carente.

E não quer esperar até o fim do ensino médio para ser descoberto pelo Estado.