quinta-feira, 29 de março de 2012

O artista

Não era mais uma tarde de domingo na casa da Vó Marieta. Não era mais um janeiro. Não era mais um verão. Não era mais um campeonato. Não era mais uma partida. Era o dia em que eu conhecia um artista. O dia em que meus olhos nasciam para o futebol. O dia em que nascia mais um torcedor. Um torcedor de coração.

O artista não balançou a rede naquele jogo. Mas correu, driblou, passou, fez falta, deu carrinho, suou a camisa. Vestiu a camisa. E não a tirou mais.

Eu também não fiz gol. Jamais fiz. Mas gritei, vibrei, cantei, xinguei, pulei, delirei, sonhei, chorei, torci, tremi, sofri, discuti, explodi, aplaudi. Vesti a camisa. E não a tirei mais.

O artista até vestiu outras camisas. Verdes, brancas, vermelhas, roxas. Ainda que a primeira, a última, a única nunca tivesse deixado seu peito. Nunca tivesse deixado nosso peito.

Com ela vencemos muitos zagueiros. Ignoramos tantos goleiros. Atropelamos o maior rival num Maraca lotado de paixão. Acumulamos gols. Golaços. Batemos recordes. Levantamos troféus. Colecionamos títulos. Vivemos inúmeras alegrias.

Infinitamente maiores que a decepção por um pênalti perdido. Por uma partida perdida. Por um campeonato perdido. Se perdemos o pênalti, a partida, o campeonato, uma dividida que seja, perdemos juntos. O artista e eu. E por isso continuamos nossa história. O sentimento não parou. Apenas confirmou a tese de que não amamos (só) porque – mas apesar de.

E, apesar de, o artista é − técnica, habilidade, velocidade, força, explosão, raça, raiva, sangue, suor, som e fúria. É o instinto puro, selvagem. É a faca só lâmina. A faca nos dentes. O Animal em extinção. O craque. O gênio. O ídolo. O homem que – como nós – de repente erra e acerta. O artista é enfim a sua torcida. É o seu povo. É a sua gente.

Ah, é Edmundo.

domingo, 25 de março de 2012

Amado mestre

Podia parecer estranho, estranhíssimo, mas tio Aldemar chegou do velório de seu melhor amigo com um sorrisinho indisfarçável. Quase indiscreto. Levemente cínico. Seu rosto, desbastado por minúsculas cicatrizes, transpirava uma alegria melancólica, vagamente tristonha, sofrida até. Mas, ainda assim, uma alegria. Coisa de palhaço que teimava em não se aposentar.

Ele se aproximou com os olhos de sempre − compridos, sorrateiros. Que pediam atenção, que suplicavam dois dedos da minha curiosidade menina. E eu não resistia. Não resisti. Perguntei-lhe então de onde vinha aquele sorrisinho indisfarçável, quase indiscreto, levemente cínico. O velho não pestanejou: da saudade. (De quem? Quem? Quem?)

Do meu Professor Raimundo. Raimundo Nonato.

Daquele que foi o maior cachaceiro do Brasil. Capaz de vencer com muitos copos de vantagem o temível Zé Pé-de-Cana no Primeiro e Único Duelo de Adoradores de Aguardente, ocorrido na mítica Maranguape. Ah, me lembro bem, como se fosse hoje, daquele cearensezinho, cabeça grande, barriga inchada, entrando todo tímido no bar do Seu Sinfrônio...

Quem diria que aquele meninote zambeta iria tão longe, atravessaria as fronteiras dos Estados Anysios de Chico City e inspiraria Walt Disney a criar o Mickey Mouse; ajudaria Albert Sabin a desenvolver a vacina contra a poliomielite; ensinaria Yelena Shushunova a vencer traves e barras nas competições de ginástica mundo afora...

Quem diria que aquele mulequinho de pernas varetas faria a cabeça de presidentes (ou não seria Salomé); passaria a sacolinha (ou não seria Tim Tones); explodiria pobres e miseráveis (ou não seria Justo Veríssimo); leria a sorte nos búzios (ou não seria Painho); não assustaria ninguém (ou não seria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro); trabalharia na Globo (ou não seria Bozó)...

Quem diria que ele se tornaria um símbalo sescual na pele de Alberto Roberto!

Quem diria...

E o tio Aldemar continuou a listar as mil faces e façanhas de seu amado mestre pelo resto do dia, da noite, da madrugada. Sem disfarçar o sorrisinho quase indiscreto, levemente cínico. Sem pestanejar da saudade. Sem deixar que eu pestanejasse um segundo e não ouvisse a maior lição aprendida com o amigo, o tal Raimundo Nonato.

A de que tínhamos de viver tantas vidas quantas fossem possíveis, ser todos os personagens que pudéssemos, vestir todas as fantasias que desejássemos: a de escritor, ator, compositor, pintor e outras duzentas. Sem pestanejar. Pois nosso tempo no palco é feito salário de professor. Assim, ó. Não dá pra quase nada. Acaba em dois minutinhos − num inescapável vapt-vupt.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Terra de alguém

Alguém disse uma vez que a vida é belíssima até você comprar e ler o primeiro jornal. Verdade. No meu caso, até eu sair de casa e descobrir que o vizinho do lado insiste em não fazer a coleta seletiva do lixo, que a passagem do ônibus aumentou de novo, que os motoristas ignoram o sinal vermelho, que meus alunos não estão nem aí para o sujeito, o predicado e o professor. Aliás, não estão aí para nada − a não ser funk, sacanagem e novelas da Record.

Felizmente, porém, o dia não se resume à primeira página do noticiário e às suas manchetes tão desanimadoras. Com um bocado de sorte e alguma procura, somos capazes de garimpar uma boa notícia no Segundo Caderno, uma resenha contente no Prosa & Verso ou, ao menos, uma notinha alegre em algum canto da Revista da TV.

Pois foi o que aconteceu comigo no último domingo. Estava eu zanzando distraidamente por um shopping center − aquele Saara de pessoas, compras e crediários correndo de um lado para o outro, crianças fazendo choro, vendedores caçando clientes, um solitário bilheteiro atendendo à quilométrica fila do cinema − quando mais que de repente surgiu um inacreditável oásis bem no meio das vitrines e escadas rolantes.

Um piano, um pianista.

Que deslizava os dedos no teclado como Verissimo dedilha ironia em suas crônicas. De Beatles a Lady Gaga, passando por Coldplay e Guns N' Roses... Oh! Sweet child of mine!

Não demorou muito para o espetáculo ganhar plateia: pessoas que esqueceram as compras e os crediários, crianças que engoliram o choro, vendedores que interromperam a caça... Por alguns minutos. Como se o tempo enfim parasse e um sopro de sensibilidade pairasse. Como se ainda fosse possível a cada um de nós garimpar a boa notícia, a resenha contente, a notinha alegre no jornal preto-e-branco de todos os dias.

Até a quilométrica fila do cinema se desfez, e o solitário bilheteiro pôde se juntar ao restante do público − para ter seus dois decibéis de paz e poesia.

domingo, 18 de março de 2012

The walking dead

Uma horda de mortos-vivos invadiu o metrô com som, fúria, suor e batuque. Gritos também. De guerra. Urros. Versos bárbaros, rimas primitivas, a poesia da civilização. Eram os restos mortais de um trio elétrico qualquer, de um bloco carnavalesco fora de época, de um desfile de fantasias desbotadas. As fezes do rei Momo. O vagão balançou.

Os zumbis que ali estavam − ali permaneceram. O jovem de blusa amarela pôs o mp3 no volume máximo. A mocinha de bochechas coradas abriu o livro de crônicas da Martha Medeiros e lá se escondeu. O senhor de boné azul chacoalhou o jornal e caiu no caderno de esportes. A vovó de bolsa verde dormia desde a primeira parada. Sua dentadura ia e voltava a cada respiração.

O lobo que ninguém viu − que ninguém via − ia e voltava em busca de sua vítima. Farejava com nariz grande, olhos grandes, ouvidos grandes. Farejou o lixo até achar alguma sobra que valesse o dia. Achou Maria Rosa, única criatura naquele trem que de fato não podia enxergar. Era cega de nascença. E a última flor ainda viva naquele jardim abandonado.

Delícia, delícia. Ai, se eu te pego. O vilão salivava. Chegou mais perto. Mais perto. Arrastou-a até o meio da horda − que continuava suando, batucando, gritando, urrando com som e fúria os mesmos versos bárbaros, as mesmas rimas primitivas, a mesma poesia da civilização. Ai, se eu te pego. Ai, ai, se eu te pego. O vagão balançou mais forte.

A flor foi devorada.

Na estação final, o lobo saltou e desapareceu na multidão. Fome saciada até a próxima viagem. Saltaram ainda o jovem de blusa amarela, a mocinha de bochechas coradas, o senhor de boné azul. Saltaram também o maquinista, os seguranças, os faxineiros, até o bom xerife Rick Grimes. Saltamos você e eu. Todos restos mortais.

Só não saltou a vovó de bolsa verde que dormia desde a primeira parada. Ninguém a acordou. Sua dentadura ia e voltava a cada respiração.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A senha

O sujeito esqueceu a senha. A senha que usa há três anos. A senha que usa todo mês. A senha que usa sem pensar. A senha que o dedo indicador conhece de cor. A senha que os olhos estão cansados de ver. A senha que o coração está cansado de ignorar. A senha que a memória está cansada de guardar. É, a memória cansou. A senha? Cadê a senha?

A senha está na pasta dos números. O número da identidade. Do CPF. Da carteira de trabalho. Da matrícula. Do passaporte. Da zona eleitoral. Da zona. Da comida congelada. Da pizzaria. Do médico. Da assistência técnica. Do bombeiro. Da polícia. Do Bope. Do FBI. Da Nasa. Da mamãe. Do papai. Do irmão. Do cachorro. Do papagaio. Da sogra.

Da senha? Nada.

De tanto procurar e não encontrar, o sujeito caiu no sono. E se estabacou no sonho. Chão duro, áspero, de pesadelo. Ele era o Willie Coyote e a senha, o Papa-Léguas. Ele era a Dorothy sem uma estrada de tijolos amarelos. Era o Jack Sparrow sem mapa nem bússola. Era João e Maria sem os pedacinhos de pão. Era o Tio Patinhas sem o segredo da Caixa-Forte.

Era tantos, não era nenhum.

Acordou sem saber quem era. Sem saber o que era. Sem saber o que procurava. Sem saber o que tanto procurava. Sem saber quando, onde, como, por quê, para quê. Sem saber. 

Muito tempo depois veio um furacão − que levou o mundo inteiro e trouxe a senha de volta. A senha esquecida há anos. A senha que ele usava sem pensar. Que o dedo indicador conhecia de cor. Que os olhos estavam cansados de ver. Que o coração estava cansado de ignorar. Que a memória estava cansada de guardar. É, a senha lembrou-se do sujeito.

Sujeito? Que sujeito?

domingo, 11 de março de 2012

Felizes para sempre

Não sei se o leitor já percebeu, mas de tempos em tempos  graças a um raro alinhamento de planetas talvez  surge uma pesquisa ibópica que constata que o povo brasileiro é o mais feliz do mundo; que o povo brasileiro é o mais otimista do Sistema Solar; que o povo brasileiro é o mais contente da Via Láctea; que o povo brasileiro é o mais alegre do universo.

Na última, entrevistaram o Joãozinho − que mora lá onde Judas perdeu as calças e sai de casa às quatro da matina para pegar a Kombi piratona do Zeca Milícia, a maria-fumaça superlotada (que enguiça todo santo dia na sexta estação do ramal de Japeri) e o metrô-sauna de fabricação chinesa, administração carioca. Tudo isso para chegar ao serviço apenas meia horinha atrasado, dois terços amassado, um pisoteado.

Entrevistaram também a Mariazinha − abandonada pelo marido bebum, pelos filhotes traficantes, pela filha de programa, pelos irmãos estelionatários, pela mãe cafetina, pelo pai (desconhecido), mas assistida pelo Bolsa-quem-diria-Família, pela igreja de Nossa Senhora do Dízimo Sagrado e pela organização-não-governamental-que-só-funciona-com-verba-governamental Brasileiras Unidas Não Desistem Nunca.

Por fim, entrevistaram o Juracy (ou a Juracy, não foi possível identificar com precisão) − que tem gastado a sola e o salto do sapato, comprado em duas míseras dúzias de prestações, na fila de um hospital público para marcar a cirurgia de safena da mãe. (Dona Pequenina sofre do coração desde que descobriu a paixão do filho [ou da filha] por silicone, purpurina e Justin Bieber.)

O que os três simpáticos personagens têm em comum? Trabalham felizes da vida num canteiro de obras onde será erguido o maior elefante branco com bolinhas verdes e amarelas nunca antes visto na história desta nação  o monumento-símbolo da Copa de Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, a serem realizados no Brasil-sil-sil.

"Mas por que Joãozinho, Mariazinha e Juracy têm o sorriso tão aberto assim?", perguntaria um sujeito amargo como eu, que certamente não foi entrevistado. Porque, segundo eles, apesar das dificuldades, estão ganhando o salário mínimo e suado para construir um pedacinho do futuro do país − salário que, se não dá para encher a geladeira velha nem o armário caindo aos pedaços, ao menos garante o chopinho do fim de semana no bar do Portuga.

Ah, bom. Agora entendi a razão de tanta felicidade.

E entendi também que não é por acaso nem por falta de diplomacia − e sim por percisão − que o povo mais feliz do mundo, mais otimista do Sistema Solar, mais contente da Via Láctea, mais alegre do universo merece de vez em quando um bom chute no traseiro.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Precisamos falar sobre o Mário

Que aqui vamos chamar apenas de Mariozinho. Por prudência, medo talvez. E para evitar que aquela famigerada piada de mau gosto saia do armário com uma arma na mão.

Dito isso, voltemos ao dia do nascimento do Garoto, há exatos 33 anos. Nem o corpo surrado e milagrosamente virgem da mãe suportou a Criatura mais tempo. No sexto mês, vomitou-a sem dó, como se expelisse uma cereja estragada. Não que Ele quisesse ficar ali. Deixou o útero com um quase sorriso; quase porque não tinha os dentes para exibir.

Desde pequeno, Mariozinho foi um exibido. Todo todo, exibia seu pauzinho para as enfermeiras ainda na encubadora. Exibia nojo do leite materno e de tudo que vinha daquela mulher estranha, de cabelos desgrenhados, olhos perdidos. Exibia a inveja que sentia de Evinha, a irmã dois anos mais velha e por alguma razão querida por todos.

Um dia Ele não resistiu à tentação  jamais resistia  e curou o terçol da menina com produtos de limpeza esquecidos sob a pia da cozinha. Ela perdeu o olho esquerdo.

Com a idade, Mariozinho foi deixando de lado a mãe, a irmã e o pai, sujeito de aparência triste numa fotografia desbotada, sobre a estante da sala. Estava desaparecido há séculos.

A atenção Dele passou a ser inteira de Elena  a mulher de óculos escuros que sentava na última carteira. Que assistia às aulas de psicologia sem dizer uma palavra, sem falar com ninguém. Que certa manhã, por um motivo que até hoje Mariozinho não conseguiu descobrir, roubou-lhe um beijo. Na boca. E mostrou-lhe os olhos. Perdidos.

E esse foi o maior pecado que Elena poderia cometer. O Monstro a atraiu até sua casa e, de lá, não a deixou mais sair. Pelo celular, ela pediu ajuda à mãe, que denunciou o sequestro à polícia, que atraiu a imprensa, que contou a história para o país, que sofreu durante quatro longos dias. Ao vivo. Até que a tropa de elite invadisse o apartamento.

Mariozinho atirou. Elena morreu.

A mãe Dele também. De desgosto.

Hoje é Seu aniversário. Como todo ano nos últimos dez, Evinha foi à penitenciária levar o bolo de chocolate com cereja de que Mariozinho tanto gostava. Desta vez, por sorte ou graça divina, não houve revista. E ela pôde finalmente sacar da calcinha a faca mais afiada e enterrá-la bem no meio de Sua testa, enquanto Ele saboreava distraidamente o doce recheio.

domingo, 4 de março de 2012

Vou-me embora para Xanadu

Lá sou amigo de Zeus, e Ele é o Sidney Magal. Lá posso sorrir o dia inteiro, cantar a noite toda, dançar sem parar com Sandra, Rosa e Madalena, as Musas do meu Olimpo. Lá os muros não existem e são coloridos. Lá não tiramos os patins para ir à escola  porque não vamos à escola. Lá o sol se espalha na pele e te lambuza de um jeito que é bom repetir.

Lá Olivia Newton-John é minha mãe e Gene Kelly, meu avô. Lá os bons tempos da brilhantina não acabaram. Lá a gente não abre o guarda-chuva para se proteger do arco-íris. Lá todos têm seu pote de ouro. Lá o pau de arara é multimilionário. Lá os movimentos são coreografados e o laquê é livre. Lá you can't stop the beat.

Lá uma colherada de açúcar cura todos os males. Lá Mary Poppins ainda é minha babá. Lá não há cadeias, presídios nem gaiolas  a não ser a das loucas. Lá Hitler é a superestrela do Moulin Rouge. Lá Billy Flynn é meu advogado; Roxie Hart e Velma Kelly, minhas amantes. Dreamgirls. Lá é primavera as quatro estações.

Lá a estrada é de tijolos amarelos. Lá you can dance, you can jive, having the time of your life. Lá a Evita é Madonna. Lá o Mickey é feiticeiro. Lá os embalos de sábado à noite não acabam quando terminam. Lá o ritmo é quente. Lá o carimbador é maluco-beleza e o Plunct-Plact-Zum vai a qualquer lugar  pode voar sem problema algum. 

Lá o fantasma encanta a ópera. Lá a noviça nos leva até o cume da montanha para nos ensinar as notas da felicidade. Dó, ré, mi. Lá os violinistas tocam nos telhados. Lá a Era da Aquário já chegou − a paz, o amor e a sacanagem são lei. Lá o céu é de diamantes, o submarino é amarelo, os morangos são para sempre. Lá o sonho não acabou.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A vida em preto e branco

Como eu gostaria de ser suficientemente corajoso ou cretino − ou um pouquinho dos dois − para começar e terminar esta crítica, crônica, comentário ou coisa que o valha com a expressão "sem palavras". Não escrever mais nada. Nem uma linha. Porque os dois vocábulos, a sós, pretinhos no branco, já dizem tudo o que O artista é capaz de provocar em qualquer cinéfilo. 

Michel Hazanavicius, por sua vez, foi corajoso. Demais. Num mundo que não para de falar; que grita isto, isso e aquilo em três, quatro, até cinco (?!) dimensões; que berra com efeitos cada vez menos especiais a vida da gente − o diretor e roteirista francês abriu mão de todas as pirotecnias possíveis para contar uma história simples e despretensiosa.

A história de um astro do cinema mudo, George Valentin (o expressivo Jean Dujardin), que de repente se vê sem chão, sem tela e sem voz diante da invasão das fitas faladas; de uma jovem atriz em ascensão, Peppy Miller (a betty-boop Bérénice Bejo), que em pouco tempo vira estrela de Hollywood; e do cãozinho Uggie, fiel companheiro de Valentin e certamente o protagonista da cena mais tensa e tocante do longa, a do "Bang!".

Afora o trio ternura e os coadjuvantes vividos por James Cromwell (o motorista Clifton) e John Goodman (o produtor Al Zimmer) − aparentemente resgatados de um filme dos anos 1920 por alguma máquina do tempo, tamanha a precisão de suas atuações −, O artista orgulhosamente apresenta uma trilha sonora (composta por Ludovic Bource) a um só tempo discreta e vistosa, que não apenas realça o que vemos e não ouvimos, como também é fundamental na (re)criação daquele universo, por pouco não lhe pincelando cores.

Por falar nelas, o preto e o branco invariavelmente aquarelam de bom gosto e elegância o mais singelo dos roteiros. E, nesse caso, a palheta do fotógrafo Guillaume Schiffman não poderia ser mais apropriada. Sequências como as de Valentin retirando furiosamente lençóis que escondem diversos objetos ou destruindo desesperadamente seu acervo de filmes − repletas de sombras agressivas e quadros inclinados − têm um quê de pesadelo expressionista e sublinham com força a angústia daquele ator em decadência.

Ator que é, em síntese, a essência de O artista e talvez uma metáfora-homenagem ao próprio cinema − que muitas vezes arrasa quarteirões e corações, alcança o topo das bilheterias, depois cai vertiginosamente, é engolido pela areia movediça do fracasso, é sentenciado de morte, mas se reinventa, levanta, sacode a areia, sapateia com graça e dá a volta por cima. Como se tudo não passasse de uma grande brincadeira.

E não deixa de ser. Com direito a final feliz e "The End" em letras garrafais.